Passada a tragédia de 13 de Novembro, a França procura entender as razões do que ocorreu e, ao mesmo tempo, reagir contra o inimigo declarado: o Estado Islâmico (EI) e seus determinados combatentes.
Em meio aos ecos de tiros e explosões, dos diagnósticos sobre a situação do país e das soluções para afrontar a ameaça terrorista, ressurgem antigos debates e emergem novos questionamentos para os franceses, atingidos de diferentes formas pelos trágicos acontecimentos.
Em seu gabinete na mesquita Omar, no número 79 da Rua Jean-Pierre Timbaud, Hamadi Hammami lê um artigo na imprensa francesa: "24 agressões contra muçulmanos desde o dia 13 de novembro". Ele mesmo, pela manhã, em Brie-Comte-Robert, subúrbio norte de Paris, colheu o testemunho de uma mulher de véu islâmico ferida por arma branca.
- Da próxima vez, cortamos sua garganta - teria ouvido.
A mesquita de Hamadi já foi alvo de polêmica no passado, recriminada nos anos 1990 por acolher fiéis do Grupo Islâmico Armado (GIA). Em 2012, o imã Mohammed Hammami, pai de Hamadi, foi expulso do país pelo governo francês, acusado de propagar uma "jihad violenta".
Hamadi alega que seu pai provou boa-fé no tribunal e que a expulsão foi "política". E diz não temer medidas de maior rigor com os imãs da França, já anunciadas pelo governo.
- Não temos por que temer esta vigilância adicional. E quanto mais formos vigiados, mais estaremos protegidos, porque os serviços de inteligência não encontrarão nada de errado aqui. E expulsaram meu pai, de dupla nacionalidade, da Tunísia, mas o que vão fazer com os imãs nascidos aqui, apenas franceses? Vão criar uma Guantánamo bis? Vão abrir a prisão de Caiena? - indaga o líder religioso.
Ele não nega a presença na França de imãs salafistas com um discurso radical, mas defende que devem ser combatidos.
- É uma minoria, mas é urgente que se faça uma radiografia dos representantes do culto muçulmano na França. E é preciso um trabalho pedagógico, pois o que se passou não faz parte da nossa religião. Há 6 milhões de muçulmanos no país que praticam sua fé no respeito às leis e à República. O suicídio é, inclusive, proibido no Islã. Como explicar que um ato repreensível na religião muçulmana seja cometido em nome da religião muçulmana?
Hamadi diz já ter sido chamado de "árabe sujo" e sofrido outras ofensas, mas apela à comunidade muçulmana para que mantenha o "sangue frio" neste clima efervescente:
- Nos últimos dias, o olhar em relação a nós se tornou, no melhor dos casos, mais insistente, e no pior, verdadeiramente ameaçador. Mas não podemos entrar neste jogo e responder às provocações, senão os terroristas terão vencido, pois o que eles querem, no fim das contas, é provocar uma guerra civil aqui.
Na mesquita, ele expôs rejeição aos atentados e fez pendurar na fachada os dizeres: "#Oremos por Paris" e "#Não em nosso nome". Em casa, a TV foi temporariamente proibida para proteger os sete filhos, de três a 22 anos.
- Eles veem as imagens e se perguntam coisas. Fiz questão de levá-los ao Bataclan (onde morreram mais de 80 pessoas) e explicar tudo o que aconteceu.
Pierre Henry, que dirige a associação França Terra de Asilo desde 1997, não vê como problema um maior controle das fronteiras nos limites da União Europeia (UE), outra reivindicação do presidente François Hollande.
- Podemos naturalmente acolher imigrantes preservando a segurança, que é uma exigência e um direito dos cidadãos. É absolutamente indispensável - afirma Henry.
Política de segurança divide opiniões
O estudioso do terrorismo Michel Wieviorka, autor de ensaios sobre a violência e o racismo, assinala a urgência da resolução das questões de segurança nesta nova etapa de estratégia de luta deflagrada pelo jihadismo do EI, mas questiona métodos e termos empregados:
- O discurso geopolítico hoje é demasiado direitista, o mesmo utilizado por George W. Bush na guerra dos EUA contra o terrorismo. E o vocabulário "guerra" me parece contestável, porque o EI não é um Estado, mas um proto-Estado ou um Estado em formação.
Sua inquietude também é direcionada para o estado de emergência recentemente adotado pelo governo francês:
- Sabe-se que medidas de exceção, a longo prazo, podem se tornar muito perigosas, como no caso da Lei Patriótica nos Estados Unidos.
Wieviorka aponta ainda a importância da crise política francesa em pleno embate contra o terrorismo e clima de campanha eleitoral.
- A situação é catastrófica, a esquerda quase não existe mais no país, a direita se "direitizou" muito, e a extrema-direita é florescente. Entramos em um período de grande tensão política às vésperas de mais uma eleição (o pleito regional, no início de dezembro). Os partidos, em vez de se unir, vão acirrar suas disputas.
O deputado socialista Eduardo Cypel, gaúcho naturalizado francês, membro da comissão de Defesa da Assembleia Nacional, não compartilha dessa opinião.
- Há todo esse debate sobre se é guerra ou não, mas penso que temos de assumir que é uma guerra híbrida, diferente, contra um inimigo que não é nem um Estado nem uma simples organização terrorista - define.
No plano externo, o parlamentar critica a desunião da UE, mas aponta uma mudança geopolítica importante, com uma "aceleração do tempo histórico" na formação de uma nova coalizão internacional de combate ao EI por causa da aproximação entre França e Rússia. Internamente, defende a nova política de segurança do governo, tanto pelo decreto do estado de emergência como pela proposta de reforma da Constituição.
E aproveita para fustigar o cientista político Bastien François, especialista de estudo constitucional, que atacou a reforma da Carta Magna como sendo "inútil" e potencialmente "perigosa":
- Penso que ele tem de evoluir um pouco, está pensando com uma cabeça do passado. Ninguém quer brincar com a Constituição, mas ninguém quer também brincar com a segurança e a vida dos franceses. Não vamos invadir um país, como Bush invadiu o Iraque, nem criar Guantánamo, mas sim usar todos os meios do Estado de direito para evitar que o país sofra este tipo de ataque. Como lembrou recentemente Robert Badinter (ex-ministro da Justiça): "Um Estado de direito não é um Estado de fraqueza".
* Zero Hora