Em Viamão, quem esperou pela visita dos agentes de saúde e de endemias em setembro, até recebeu os profissionais em casa, porém, na função de carteiros. Os moradores ficaram o mês inteiro sem a atenção dos agentes comunitários, pois, ao invés de cumprir com as funções previstas em lei - de educação em saúde e prevenção de doenças -, os funcionários foram orientados pela prefeitura a entregar correspondências.
Os 188 agentes entregaram carnês do Recred, um programa de recuperação de créditos da prefeitura, pelo qual é possível quitar dívidas como IPTU e ITBI. Junto à cobrança, foram folhetos de campanhas de conscientização do município, como Cidade Limpa e Regularização Fundiária.
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De acordo com a comerciante Cândida Cristina Fernandes Pereira, 37 anos, da Santa Cecília, o carnê foi entregue em sua casa por uma agente que deveria estar circulando pelas casas para orientar e prevenir contra a dengue.
- A culpa não é dos agentes, que cumprem ordens. O que mais revolta é saber que a função deles está sendo desviada - diz.
Marido de Cândida, o comerciante Ricardo Machado dos Santos, 47 anos, confirma que a situação da saúde de Viamão é "deplorável".
- Nosso sistema de marcação de consultas não funciona. Algum agente poderia vir aqui me dar orientações, ao invés de panfletos - reclama.
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Agentes sem voz
O DG conversou com alguns dos agentes de saúde de Viamão. Eles são funcionários da empresa terceirizada Instituição dos Lagos Rio e não quiseram se identificar, por temer perder o trabalho.
Uma funcionária contou que nem ela nem seus colegas concordaram com a situação, mas não houve escolha:
- O prefeito (Valdir Bonatto) reuniu os agentes e foram entregues caixas de carnês para distribuirmos aos inadimplentes.Deveríamos estar auxiliando hipertensos e diabéticos, por exemplo. Morri de vergonha da população.
Sumiço dos profissionais foi notado
O Diário Gaúcho chegou a flagrar uma agente fazendo entregas, que estariam atrasadas, no início da semana. Ela conta que muitas pessoas perguntaram sobre o seu sumiço:
- Entregar carnês é muito ruim. Faz os moradores perderem a confiança.
Outro profissional afirmou que o prefeito pediu para que eles fiscalizassem quem joga lixo na rua.
- Ele disse que seremos os "olhos" para multar as pessoas. Somos agentes de saúde, e não fiscais. Não recebemos um centavo a mais por isso - revela.
Conforme a auditora fiscal do Ministério do Trabalho, Gerência Regional do Trabalho e Emprego de Viamão, Tânia Regina Vieira da Silva, é preciso avaliar o contrato realizado entre prefeitura e a terceirizada para esclarecer as funções que podem ser realizadas. Ela destaca que o trabalho exercido fora das previsões legais caracteriza desvio ou acúmulo de função.
Até o momento, não houve denúncias sobre o caso na Delegacia Regional do Trabalho de Viamão.
Proveito de brecha na lei
Conforme a Política Nacional de Atenção Básica de 2012, cabe aos agentes comunitários da saúde cadastrar famílias e orientar a população quanto à utilização dos serviços de saúde disponíveis, acompanhar as famílias com visitas periódicas e desenvolver atividades de promoção da saúde. A lei ainda permite que os funcionários exerçam outras funções quando as anteriores já estiverem cumpridas, desde que ligadas à saúde.
Para a presidente do Sindicato dos Agentes Comunitários da Saúde do Rio Grande do Sul (Sindacs), Josiane Rodrigues de Oliveira, isso deixa uma brecha na lei, que abre para interpretações distintas.
- Entregar materiais é trabalho para o setor administrativo - fala Josiane.
Economia de R$ 3 mil
A prefeitura de Viamão calcula ter economizado cerca de R$ 3 mil com a entrega. A prefeitura defende que "a entrega foi conjugada com a rotina de trabalho dos agentes".
A secretária da Saúde, Sandra Sperotto, diz que a entrega de correspondências otimizou recursos.
- Entendemos que os folhetos e o carnê estão relacionados à saúde. Isso é ser criativo e achar soluções - afirma.
O Ministério da Saúde é o responsável pelo pagamento dos agentes - cada um recebe R$ 1,3 mil mensais. Segundo o órgão, a gestão das ações dos agentes é descentralizada e as prefeituras têm autonomia para cuidar das atividades dos funcionários.