A toga da mais alta Corte do país não pesa, tampouco cansa Marco Aurélio Mello. Prestes a completar 25 anos de Supremo Tribunal Federal (STF), dia 13 de junho, e 69 de idade, em 12 de julho, o ministro mantém o vigor de quem aprecia a missão de julgar. Marco Aurélio acumula quase 37 anos de magistratura. Debutou como juiz em 1978, no Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, e passou pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) antes de assumir sua cadeira no STF em 1990, indicado pelo então presidente Fernando Collor, que é seu primo. À época, a Constituição Federal recém havia sido promulgada.
Definindo-se como defensor da transparência, Marco Aurélio não se intimida de divergir da maioria dos colegas, característica que lhe valeu a alcunha de "ministro do voto vencido". Há 10 dias, ele teve sua despedida da Corte adiada com a emenda à Constituição - conhecida como PEC da Bengala - que passou dos 70 para os 75 anos a aposentadoria compulsória dos ministros.
Se tinha a despedida agendada para 2016, o magistrado só vai pendurar a toga em 2021, fato que lhe agradou, como afirmou ao receber Zero Hora em seu gabinete, com vista para Praça dos Três Poderes. Para ele, a aposentadoria deve ser uma recompensa, e não um castigo. Deixar o Supremo neste momento, no auge do conhecimento técnico, seria uma pena, diz Marco Aurélio.
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O senhor tornou-se ministro aos 43 anos, em 1990. Como é exercer a função no Supremo depois de duas décadas e meia?
Tornei-me juiz em 1978. A minha bagagem hoje, em termos de experiência, de domínio do Direito posto, é muito maior. Considero-me um melhor juiz, estou muito mais habilitado a bem servir do que estive há 10 anos. Gosto muito do que faço, não compreendo como alguns colegas viram as costas a uma cadeira da importância da cadeira do Supremo. São pessoas que não são afeitas à arte de julgar os semelhantes e seus conflitos de interesses.
O Supremo mudou muito desde a sua posse? Melhorou ou piorou?
Mudou substancialmente. Hoje é um Supremo mais solto. Notamos que houve uma mudança muito substancial, num espaço de tempo pequeno, em termos de estabilidade dos pronunciamentos, o que não é positivo.
Significa que a Corte revisa jurisprudências com muita frequência?
Revê, claro. Cada cabeça é uma sentença. A formação técnica e humanística dos atuais ministros não é a mesma dos ministros anteriores. Penso que nós devemos ter, principalmente, em um órgão de cúpula como é o Supremo Tribunal Federal, uma composição um pouco mais permanente para haver a estabilidade da interpretação das normas jurídicas.
Há 25 anos, os ministros tinham suas decisões e vidas pessoais tão vigiadas como hoje?
O homem público, de início, está na vitrine. Aquele que tem alguma coisa a esconder não deve aceitar um cargo público. Sou a favor da maior transparência possível, e a publicidade é a tônica da administração pública. Saio de casa com a roupa que estou, moletom, tênis e camiseta, e vou ao mercado, à farmácia. Sou um cidadão como outro qualquer, creio que todos devem proceder dessa forma.
O senhor não se intimida em divergir dos colegas, mesmo quando a maioria é contrária à sua opinião? A posição do voto vencido não incomoda?
Já se disse que a coragem é a síntese de todas as virtudes. Ela me acompanha desde que me conheço. No colegiado, nada disputo e só faço questão de ter a palavra preservada - também pudera - e que nos anais do tribunal fique consignado como votei. Convençam-me do acerto da ideia jurídica, inicialmente repudiada, e evoluirei, já que não sou um juiz turrão. Agora, adotar a postura politicamente correta, contrariando o convencimento, é que não faço. De qualquer forma, entro e saio da sessão com o mesmo sorriso. Desejo encerrar meus dias de juiz com o sentimento do dever cumprido. Atuo em colegiado julgador há 36 anos e sempre procedi dessa forma. Posso errar? Sim, porque é humano, mas sufocar o que penso jamais. Sou um servidor-juiz muito feliz.
O senhor se aposentaria em 2016. Como avalia a aprovação da PEC da Bengala, que prorrogou de 70 para 75 anos a aposentadoria dos ministros?
Escrevi um artigo quando era insuspeito, em 2002 (tinha 55 anos), sobre o castigo da aposentadoria compulsória. Nunca entendi a limitação de idade. Eu próprio alcancei aos 52, 53 anos tempo suficiente para me aposentar, só que a Viúva continuaria pagando o que eu ganho hoje, mesmo aposentado. É um contrassenso. Penso que, principalmente no Supremo, e a nossa Suprema Corte foi criada à imagem da Suprema Corte americana, deveria haver a vitaliciedade de fato, a permanência no cargo enquanto o ministro está vivo e com disposição, em termos de saúde, para servir.
Após nove meses de espera, com a Corte desfalcada de um ministro, a presidente Dilma Rousseff indicou Luiz Edson Fachin, escolha que sofre contestação no Senado. A aprovação está contaminada pelo ambiente político?
O professor Fachin é um pensador do Direito, um acadêmico respeitado no Brasil e no Exterior, e tenho certeza de que será um grande quadro no Supremo. Tive a oportunidade de falar sobre a sabatina (realizada na terça-feira, com aprovação do jurista na Comissão de Constituição e Justiça), e disse que o professor Fachin estaria sendo um instrumento para se fustigar quem o indicou. O objetivo da sabatina não é esse.
Fachin é criticado por ter lido um manifesto a favor de Dilma Rousseff na campanha de 2010. Essa relação compromete a independência de um ministro?
Vou repetir o que disse quando o presidente Lula indicou os ministros Carlos Ayres Britto, Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski: não se agradece a indicação com a capa, por isso a cadeira é vitalícia. Nós não cumprimos um mandato, não dependemos de uma recondução, não precisamos agradar. O momento de agradecer a escolha é anterior à posse.
Era aguardada essa dificuldade para aprovar a escolha de Fachin?
Era, porque vivemos tempos muito estranhos, de fragilização enorme do poder Executivo sob o ângulo político e financeiro do país. Se Fachin tivesse subscrito um manifesto de um candidato de oposição, talvez ele não seria indicado pela presidente, que tem outra base de sustentação. Ele exerceu em 2010 um direito inerente à cidadania, o direito de liberdade de expressar-se e de ter uma opção política. Isso não quer dizer que, assumindo uma cadeira no Supremo, venha a votar a favor da situação.
Qual foi o caso mais difícil de julgar na sua carreira?
Não há caso difícil, nos acostumamos de tal forma a julgar que, para nós, processo não tem capa, processo tem conteúdo. E devemos atuar com pureza da alma, atuar a partir apenas da ciência e consciência possuídas. Não ocupamos cadeira voltada a relações públicas.
O julgamento do mensalão alterou a imagem da Corte perante a opinião pública?
Alterou, pois foi uma sinalização muito concreta. Que sinalização foi essa? A lei vale para todos. Naquele processo, nós mantivemos aqui todos os réus, o que, sob a minha ótica, foi um erro, porque a nossa competência está na Constituição, não podemos esticá-la. Houve um julgamento simbólico.
Por que o Supremo tinha dificuldades de condenar pessoas com foro privilegiado?
Jamais houve dificuldade. É preciso lembrar que houve um espaço de tempo em que, para processarmos detentores de mandato na Câmara ou no Senado, precisávamos da licença da respectiva Casa, que não era dada. Então, com o término do mandato, o processo-crime acabava baixando à origem. Hoje não mais existe a necessidade de licença.
O senhor é favorável ao foro privilegiado? Antes do mensalão havia comentários de que essa prerrogativa implicava impunidade.
Sou contrário ao foro privilegiado. Há de vingar o tratamento igualitário das partes, mesmo porque quem é julgado é o cidadão que ocupa o cargo. Não se julga o cargo.
O julgamento do mensalão deixou lições?
Imaginávamos que já tínhamos visto tudo em termos de corrupção, e não tínhamos visto nada. Hoje, se você fizer um cotejo, considerados os valores, você pode até numa visão leiga enquadrar a ação penal 470, conhecida por todos como mensalão, como uma ação própria de um juizado especial de pequenas causas.
O impacto do julgamento dos futuros processos decorrentes da Operação Lava-Jato será tão grande quanto foi o do mensalão?
Pelo que tem sido veiculado pela imprensa, será maior, diante dos valores envolvidos e, também, considerados os que teriam participado da tramoia, ou seja, os acusados.
Como o STF se prepara para avaliar as denúncias e eventuais processos da Lava-Jato?
Hoje a agilidade é muito maior, pois foram criadas duas turmas no tribunal. Ano passado, por exemplo, nós apreciamos inúmeras denúncias e julgamos inúmeros processos-crime, quando lá no plenário não teríamos julgado praticamente nada. A turma é um colegiado menor, são cinco integrantes, é mais célere nos debates. Até certo ponto, vejo de arquibancada esses julgamentos (da Lava-Jato), porque estou na primeira turma e o caso está na segunda.
Mas eventuais recursos serão apreciados no plenário?
Vai surgir uma controvérsia interessante. Teve muita discussão sobre os embargos infringentes, sobre o recurso no plenário (com 11 ministros) em casos em que a defesa foi derrotada, mas teve quatro votos a favor. Na turma (cinco ministros), com quatro votos a favor o réu está absolvido. São aplicáveis ou não os embargos infringentes em caso de condenação, bastando um voto a favor da defesa?
Os 11 ministros terão de decidir a questão.
É uma matéria em aberto, terá de ser decidida. Quando o pleno alterou o regimento para deslocar para as turmas as ações penais, ele acabou proclamando que os embargos infringentes não sobreviveriam porque, senão, o processo teria de ficar lá no pleno.
O que o Judiciário precisa corrigir para qualificar o seu serviço?
Precisamos avançar culturalmente, observar o Direito posto e evitar essa avalanche de processos. Não podemos exigir dos juízes um sacrifício maior do que o sacrifício que muitos já vêm fazendo. Espero que a reforma do Código de Processo, e ainda não parei para estudá-la, acelere o desfecho final das causas.
O senhor comentou que vivemos "tempos estranhos". Existe risco de uma quebra constitucional?
Quebra constitucional não, porque não há espaços para retrocessos. Passamos em 1988 de um regime de exceção para um regime essencialmente democrático, e continuaremos com a Constituição. Quando me refiro a tempos estranhos, parto não só do conhecimento do que vinha ocorrendo, por exemplo, na Petrobras, como também da constatação de que há perda de parâmetros, abandono de princípios, o certo passa para o errado e vice-versa. O que há é um cinismo muito grande, vingando a mentira. Não se avança culturalmente assim.
A demanda de trabalho no STF é grande. Sobra tempo para projetos pessoais?
Gostaria de fazer muito mais, mas não há tempo. Gosto das minhas leituras. Moro a 10 minutos do tribunal, em um local muito aprazível. Como cheguei a Brasília muito cedo, pude comprar um terreno que hoje não teria mais condições de comprar. Para você ter uma ideia, tenho uma vaquinha em casa que, quando está com cria nova, dá o leite e, inclusive, é feito queijo.
Quais suas últimas leituras?
Estou lendo um livro maravilhoso do Leonardo Padura, O Homem que Amava os Cachorros. Aliás, li há pouco outro maravilhoso, que todo brasileiro deveria ler, da Malu Gaspar. Tudo ou Nada, a biografia não autorizada, ou seja, é realmente uma biografia e não uma simples publicidade, do Eike Batista.
O que o livro ensina?
Ensina a perceber como há no mercado aventureiros e sonhadores, e como há gente disposta a comprar sonhos. O que ele vendeu de empresas que estavam apenas no papel não foi brincadeira. Deve ser um sedutor.
O senhor tem visto os jogos do Flamengo, seu time?
Meu Flamengo não está muito bem. Por sinal, em breve terei de julgar o caso do título brasileiro de 1987, entre Flamengo e Sport. O caso também vale a disputa da famosa Taça das Bolinhas (Flamengo e São Paulo brigam na Justiça para saber quem foi o primeiro pentacampeão nacional).
Vai se declarar impedido em razão da paixão pelo clube?
Por quê? Se eu votar contra o Flamengo, ele vai ter que me perdoar. Quantas vezes o Flamengo perdeu seus jogos e eu o perdoei? (risos)
Quando o STF deve retomar a votação da desaposentação?
Cheguei a pronunciar-me sobre o tema como relator (a desaposentação permite ao trabalhador, depois de aposentado pela primeira vez, voltar a trabalhar para se aposentar de novo, com benefício maior, baseado nas novas contribuições do último período de trabalho). Pronunciei-me no sentido de, observado o período de carência quanto às contribuições, ter-se o recálculo do valor dos proventos, isso caso o trabalhador resolva deixar em definitivo a atividade. A previsão de retorno à pauta é complicada, depende da liberação do processo por quem pediu vista e da inserção pelo presidente do tribunal, Ricardo Lewandowski.
O STF já tem maioria no julgamento para proibir o financiamento empresarial das campanhas eleitorais, mas aguarda há mais de um ano o voto de Gilmar Mendes, que pediu vista. A situação incomoda a Corte?
Pelo noticiário, o caso está com o autor do pedido de vista, que ainda não deve ter convencimento sobre a matéria e deve estar refletindo. Já havia maioria formada. Eu mesmo antecipei o meu voto (contrário ao financiamento empresarial).
O senhor costuma levar tanto tempo para proferir um voto?
Não tenho hoje processo com pedido de vista, estou zerado. No caso do financiamento, eu era presidente do TSE e entendia que o tribunal devia decidir a questão, avizinhavam-se as eleições. Ele (Mendes) pediu vista e não sei o motivo. É um problema de compenetração individual. Só posso pressupor que ele está tendo dificuldades para acompanhar uma das correntes.
A TV Justiça foi criada na gestão do senhor como presidente do STF. Que mudanças a TV trouxe?
Com a TV Justiça passou-se a contar com um controle externo indireto, um controle salutar. O julgador presta contas à sociedade, sem que isso implique que não possa, por vezes, contrariá-la. Foi um avanço, levando o Direito vivo às faculdades e aos lares. O Direito rege a vida em sociedade, e é preciso que o cidadão conheça as regras mínimas que o integram e que são regras de boa convivência. E já se disse, no jargão popular, que Direito é bom senso. E é mesmo.
Reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos, como está sendo discutido no Congresso, fere a Constituição?
Ferir a Constituição não fere. Ocorre que a mudança será uma esperança vã dada à sociedade, como se na redução da idade estivesse a vinda de dias melhores. Caso ocorra, o prejuízo social será maior que o benefício. O adolescente sairá da cadeia pior do que entrou, voltando a delinquir. É hora de combater, sem hipocrisia, as causas. E tudo passa pela educação, pela criação de oportunidades para a força jovem. Cadeia não conserta ninguém, especialmente na situação desumana atual.
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