Muito além de portar arco, flecha e cocar, é preciso mesmo coragem para ser índio. A cultura deste povo é pouco valorizada no território que ajudou a desbravar. Não é preciso ir longe para se certificar disso: basta uma volta pelo Centro de Caxias do Sul. Estão logo ali, no calçadão da Júlio, em frente a bancos ou farmácias, próximos da Praça Dante, vendendo artesanato. Os caingangues passam despercebidos na maior parte do tempo. Há quem questione: por que insistem em fabricar estes penduricalhos? Porque é o que sabem fazer de melhor, defendem-se, e dá a dignidade que merecem:
- Não é porque não estamos de cocar que não somos mais índios. Não temos que viver embaixo de uma oca. Nós nos reconhecemos, sabemos quem são os nativos e não temos maldade com as pessoas. Somos índios, sim, com o maior orgulho - sentencia o cacique Neri Ribeiro, 45 anos.
Galeria de fotos: confira imagens da aldeia indígena do interior de Farroupilha
Ribeiro é a referência para 20 famílias que vivem no bairro Nova Vicenza, em Farroupilha, em uma aldeia indígena. É ali que vive a única comunidade indígena da Serra gaúcha. Nas demais cidades, dormem em rodoviárias ou em outros lugares públicos, porque se denominam nômades. Portanto, não são contabilizados nos censos.
Em Farroupilha, habitam moradias de alvenaria doadas pelo Estado e município há cerca de oito anos. Cada casinha tem dois quartos e sala com espaço para cozinha. O banheiro é coletivo e precisa de reparos com urgência, como o Ministério Público já apontou. Mas o vilarejo é bastante organizado: há escola, igreja evangélica, água encanada e eletricidade.
Em algumas casas há televisão com parabólica, e muitas famílias portam celular. Dividem-se entre os que fabricam artesanato e os que comercializam. Para chegar até os pontos de venda, alugam uma van diariamente que os transporta até o Centro de Caxias. Pagam R$ 90 para ir e voltar. O custo é dividido entre eles.
- O que nos preocupa é que nossa matéria-prima está escassa. Aqui, por exemplo, não conseguimos cipó, taquara, palha. Isso tudo secou há mais de dez anos. Dependemos de materiais de outras regiões do país - justifica Ribeiro.
As 98 pessoas que hoje vivem na comunidade indígena são oriundas de Cacique Doblê e Tenente Portela, distante mais de 500 quilômetros da Serra, e se abrigaram em Farroupilha na esperança de encontrar uma realidade melhor. De fato, afirmam estar satisfeitos. Quatro índios trabalham em produções de fábricas. Duas estão empregadas na escola indígena que fica na própria aldeia. O restante sobrevive do artesanato, que garante sustento médio de R$ 1,8 mil por família:
- Se quiséssemos viver como os índios, a base de caça e pesca, também não daria. Ou tu enxerga peixes nesse rio aqui, que está com mau cheiro? - questiona o cacique.
Confira o vídeo sobre a aldeia:
Lugar de criança é na escola...
O clima de sossego dos índios adultos, sentados na varanda das modestas casas costurando itens de artesanato, se mistura com a agitação da infância. Dos quase 100 moradores da aldeia de Farroupilha, 33 são crianças. Um parquinho instalado pela prefeitura e um campo de futebol servem como cenário para a maioria das brincadeiras. De pés descalços, sob o olhar das mães, elas esquecem o tempo. Mas também cumprem obrigações: 12 delas frequentam aulas na Escola Estadual Indígena Ensino Fundamental Nivo. As demais estão inscritas normalmente no Colégio Estadual Santiago, na Estrada dos Romeiros.
Orilde Ribeiro, 29 anos, é índia e professora dos 12 alunos no ensino fundamental. Cursou magistério em Tenente Portela e atua também como a diretora do coleginho. Vive ali mesmo, na aldeia. Dá aula em uma das casas cedidas pelo governo e o ensino funciona no formato multisseriado. De manhã, alunos do 3º e 4º ano. À tarde, crianças das duas séries iniciais. A biblioteca fica dentro da casinha, com uma única estante, e o material é exatamente o mesmo que crianças de todo país têm acesso. Entre as disciplinas ensinadas está o idioma caingangue. É uma forma de preservar a cultura.
Na quinta à tarde, Ruama, 6 anos, Deivid, 8, Pablo, 6 e Wesley, 6, estudavam a formação das palavras. Estavam em silêncio, atentos às orientações de Orilde, que não esconde em momento nenhum o orgulho de se formar como professora.
- Foi uma forma de concluir o ensino médio também. Minha maior satisfação é vê-los estudando - conta.
Do lado de fora, o canhoto Felipe Paulo, 8 anos, ensaiava embaixadinhas. Felipe é a sensação da aldeia: ganhou uma bolsa e joga na escolinha de base do Juventude, em Caxias.
... e não pedindo esmola
É cena comum crianças pedindo esmola no Centro, junto aos índios, que vendem artesanato. É comum, antigo e revoltante. O Conselho Tutelar de Caxias do Sul admite que recebe inúmeras denúncias de crianças que ocupam o Centro para pedir dinheiro. Quando há confirmação, o órgão adverte os pais.
- Pedir esmola, no entanto, não é crime. E os índios possuem uma legislação específica que permite que as crianças vendam junto aos pais - afirma a conselheira Cleonice de Fátima Andrade.
Expor a criança a maus tratos e negligência, no entanto, é crime. A conselheira afirma que em Caxias do Sul ainda não houve nenhuma denúncia encaminhada ao Ministério Público por este motivo.
- Somos contra dar esmola. Mas se tem gente que pede, é porque tem gente que dá. A população precisa se conscientizar e não ceder mais - aconselha.
Vender artesanato é direito de índio
A principal fonte de sustento dos índios é o artesanato e isso está garantido por lei. É direito deles e está escrito no Estatuto do Índio. A lei 6001, de dezembro de 1973, afirma que o artesanato e as indústrias rurais devem ser estimulados, "no sentido de elevar o padrão de vida do índio com a conveniente adaptação às condições técnicas modernas". Por isso, podem comercializar sem repreensão.
E o artesanato que fabricam é a soma da destreza do manuseio de facas e do capricho com pinturas, com uma mãozinha da tecnologia. Enquanto Cleber Ribeiro, 27 anos, cuidava do corte de madeiras, matéria-prima das corujinhas, a esposa Andressa Sales, 25 anos, é responsável pelo acabamento. Cleber corta a madeira, descasca, faz as marcas para talhar o material. Ele deixa a madeira bruta tomar forma de uma coruja, com tamanhos que variam. A esposa Andressa recebe o bicho cru e o coloca no aparelho pirógrafo, que dá cor escura às dobras da ave. Produzem em média 10 itens por dia. Costumam vender no Centro de Caxias e também no Santuário de Caravaggio, em Farroupilha, aos fins de semana, com preços que variam de R$ 15 a R$ 20. As corujas são as campeãs de venda do casal, que produz também arcos e flechas temáticos.
- Em ponto turístico como o Santuário, o pessoal adora, porque vem gente de outros Estados também - afirma a jovem.
Já o casal Nelinho Paulo, 36 anos, e Neusa Candinha, 36 anos, prefere tecer os populares filtros dos sonhos. A produção parte de uma argola plástica ou de madeira e segue com um trançado bastante articulado. São vendidos de R$ 8 a R$ 20.
- Cada semente colocada no filtro tem um significado. Esta protege contra o olho gordo, esta contra inveja e esta fortalece a sorte. Vendemos muito bem - acredita Nelinho, que fatura em média fatura R$ 1,8 mil com a venda de artesanato.
Situação não é a mesma em toda a Serra gaúcha
Ainda que em Farroupilha os índios vivam em condições dignas de moradia e sobrevivência, a situação não é a mesma no resto da Serra gaúcha. Outros dois municípios que servem de passagem para muitos deles são Bento Gonçalves e São Marcos. Em Bento, um impasse entre prefeitura e Fundação Nacional do Índio (Funai) fez com que eles deixassem a Capital Nacional do Vinho. Instalados às margens da BR-470, embaixo de um viaduto, e depois na rodoviária, o poder público providenciou um terreno próximo ao bairro São Roque para que improvisassem cabanas e vivessem por lá no ano passado. A comunidade indígena argumentou ser longe dos pontos de venda de artesanatos, que seriam na Cidade Alta, e desaprovou a solução da prefeitura. Já em São Marcos, eles ocupavam o pórtico da cidade, e depois a rodoviária. A prefeitura fornece passagens para que voltem aos municípios de origem, maioria como Charrua e Tenente Portela.
- Eles viajam muito para vender e sobreviver, e a Serra gaúcha é tomada pelo turismo. Uma medida eficaz seria a criação de políticas públicas que valorizem o artesanato como outra produção cultural da nossa gente - sugere o antropólogo Rafael José dos Santos, 57 anos, professor da UCS.
Santos defende que a identidade dos índios permanece intacta, mesmo que não portem mais vestimentas típicas ou rituais sagrados.
- É como um imigrante italiano que não parou no tempo e se adaptou ao meio urbano. Mas eles preservam algo que não deixará a cultura morrer jamais: o idioma caingangue - lembra o antropólogo.
Dia do Índio
Conheça a única comunidade indígena da Serra gaúcha, em Farroupilha
Na aldeia de quase 100 caingangues há escola, igreja evangélica e espaço para fabricar artesanato
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