A ação a tiros de um soldado da Polícia Militar (PM) de folga que custou a vida do surfista catarinense de ondas gigantes Ricardo dos Santos, o Ricardinho, 24 anos, trouxe mais uma vez a abordagem policial ao centro de uma discussão complexa e que ainda tem correntes que divergem sobre, por exemplo, a região do corpo a ser atingida se o disparo for necessário.
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Há unanimidade em torno de que, numa ocorrência, o policial deve fazer o uso progressivo e legal da força conforme o grau de ameaça que recebe. A partir daí, há um posicionamento doutrinário com correntes favoráveis e contrárias sobre o grau de resposta a ser aplicado.
Em questão estão os chamados tiros incapacitantes, aqueles em partes não letais, como pés e braços. Por outro lado, policiais ouvidos pela reportagem afirmam que estudos feitos nos Estados Unidos e em alguns países europeus apontam que um tiro para ser incapacitante e interromper de vez a ameaça à vida do agente ou de terceiros deve ser desferido em local que possa causar o maior dano possível (tórax).
Esse é apenas um capítulo de uma grande dimensão de fatores que abrangem os momentos críticos como a aparente discussão envolvendo o soldado Luís Paulo Mota Brentano, 25 anos, e o surfista. Especialistas e integrantes do meio policial dizem que há pontos a serem melhorados. Um deles seria intensificar as ofertas de cursos de reciclagem, além do contato com a população.
- A PM em especial, que tem contato direto com a população, precisa caprichar mais na polidez do trato com as pessoas - opinou o especialista em segurança e coronel aposentado do Exércio, Eugênio Moretzsohn.
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Na decisão em que decretou a prisão preventiva do soldado, o juiz de Palhoça, Maximiliano Losso Bunn, ressalta que "o acusado é policial militar, agente que deveria zelar pela ordem e segurança da sociedade mas que, ao contrário, cometeu o crime estando fora de serviço, severamente embriagado, fazendo uso da arma que lhe é cedida pela PM, deixando de prestar ou solicitar socorro algum à vítima Ricardo e, tampouco, comunicar à polícia".
Se o soldado Mota tinha ou não motivos para atirar, a própria Polícia Civil ainda tenta apurar, numa conclusão que tem tudo para gerar um amplo debate no Tribunal do Júri, caso ele seja submetido a julgamento.
Treinados durante nove meses na academia, integrantes de uma instituição com 179 anos e que é vista como uma das polícias brasileiras mais bem treinadas do país, os policiais militares de Santa Catarina vivenciaram dias de extremo desconforto.
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Entre oficiais e praças, ficou evidente o sentimento de reflexão diante do trágico episódio na última segunda-feira, na Guarda do Embaú, em Palhoça, quando o soldado, ao se envolver numa discussão de trânsito que parecia banal, acabou sacando a pistola e acertando dois tiros - um deles nas costas - em Ricardinho.
Mota alegou legítima defesa e que atirou porque havia pessoas que portavam um facão e partiram para cima dele. Até sexta-feira, a Polícia Civil não tinha localizado nenhuma arma branca mencionada.
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Ao falar sobre o assunto, o comandante-geral da Polícia Militar, coronel Paulo Henrique Hemm, falou em mau exemplo e expulsão, dando a entender que dificilmente o modo como o soldado agiu aconteceu dentro dos preceitos legais pregados pela corporação.
Numa situação de abordagem e uso de arma, há protocolos a serem seguidos por policiais. São normas como se fosse um passo a passo de como agir. No entanto, ressaltam policiais ouvidos pelo DC, episódios assim costumam ser deflagrados em segundos de extrema dificuldade e de emoções carregadas em ambos os lados, o que pode resultar em consequências às vezes inesperadas e indesejadas.
Ações em dia de folga
O envolvimento de policiais militares de folga em ocorrências graves e de repercussão não é algo incomum. Dados da própria Polícia Militar (PM) mostram que, em 2014, foram 59 casos registrados nessa situação em Santa Catarina. A PM diz que houve fatos em que os policiais tiveram sucesso na ação.
- Em muitas dessas situações os policiais tiveram êxito, mas também houve morte de policial. Então é comum o policial de folga estar diante de uma situação e ter que agir - diz o subcomandante-geral da Polícia Militar, coronel João Henrique Silva.
Ele citou dois casos: um no dia 5 de janeiro de 2014, em Joinville, quando um policial de folga evitou um assalto e apreendeu um fuzil com bandidos e outro no dia 31 de dezembro daquele ano, em São José, quando outro policial, que também não estava de serviço, impediu um assalto em uma padaria.
Estresse entre policiais
Representantes de entidades de classe de policiais militares e civis ouvidos pelo DC sobre a trágica ação do soldado em Palhoça afirmam que há de se levar em consideração o alto nível de estresse que atinge hoje a categoria.
- É uma profissão extremamente desgastante. Nos últimos quatro, cinco anos a polícia virou alvo. Em SC há situação peculiar que envolve o crime organizado e tivemos os ataques a bases com os policiais sendo vítimas. Por isso há um clima defensivo intenso - relata o presidente da Associação dos Praças de Santa Catarina (Aprasc), Elisandro Lotin.
Ele defende a necessidade de aperfeiçoamento no serviço psicológico que é oferecido na PM, com aprofundamento, incentivo e orientação pela corporação.
Na Polícia Civil, a estimativa é de que 300 policiais em Santa Catarina estejam afastados para tratamento de saúde, o que representa cerca de 10% do efetivo, conforme o presidente do Sindicato dos Policiais Civis de Santa Catarina (Sinpol), Anderson Vieira Amorim.
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