Isso não é uma crítica, é uma observação. Acho que a neurociência deveria ser abordada desde o Ensino Fundamental, para as crianças entenderem como o cérebro funciona e como podem ser enganados e ludibriados, para que a gente de fato algum dia possa falar "eu sou uma pessoa absolutamente consciente dos vícios que tenho ou não". Não que o consumo seja manipulado, ele é consciente.
ZH - O melhor conhecimento do nosso cérebro pode ajudar a evitar o consumismo?
Ana Beatriz - Não apenas o consumismo, mas muitos outros tipos de transtorno, principalmente relacionados às compulsões. Quando falamos em compulsão por compras, estamos falando de um tipo de compulsão, mas existe compulsão por comida, jogos, internet, sexo. Todas têm um funcionamento básico.
No cérebro, temos um sistema do prazer, áreas que, quando acionadas, dão um prazer imediato. Todos temos isso, a diferença é que em alguns isso é mais facilmente estimulado e alimentado. O conhecimento básico desde muito cedo das estruturas mais importantes que determinam nosso comportamento, nossas fraquezas e potencialidades, seria com certeza algo muito importante para a formação de cidadania e consciência.
ZH - Como funcionam os sistemas cerebrais ligados às compulsões?
Ana Beatriz - Nos cérebro, temos dois sistemas comuns a todos os seres humanos: o sistema do medo e o sistema do prazer ou de recompensa. O sistema do medo está sempre nos ligando à sobrevivência. É o que nos faz, por exemplo, olhar para os lados antes de atravessar a rua para não sermos atropelados. Outro sistema também muito potente está sempre acionando o nosso prazer, de preferência o prazer imediato.
É o que chamamos de sistema de recompensa. A compulsão por compras e outras compulsões e até mesmo o consumismo - que não chega a ser uma compulsão, visto que não é propriamente um descontrole, mas sim um consumo excessivo e desnecessário, que a maioria de nós hoje vive, acionam esse circuito ligado ao prazer. Toda vez que uma pessoa compra, aciona esse sistema de forma imediata. Cada vez que essa pessoa é estimulada a comprar mais, mais vai tendo esse prazer imediato e querendo mais, aí pode chegar ao comportamento compulsivo.
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ZH - De que modo a publicidade usa a neurociência para estimular esse comportamento?
Ana Beatriz - O cérebro não distingue o que é real e o que é virtual. Então, se eu imagino alguma coisa, para meu cérebro, estou vivenciando aquilo. Por isso, meditação e relaxamento são técnicas que dão tão certo, porque basta imaginar para você se sentir em outro lugar. Do mesmo modo, se você vê notícias ruins muito repetidamente, começa a ficar amedrontado porque, para o cérebro, você está de fato deparando com aquelas situações.
Se para o cérebro não existe essa distinção, quando se faz um anúncio em que alguém levanta de manhã e tem um café maravilhoso à espera reunindo a família, todo mundo com roupas lindas e o mar à frente, para o cérebro, quando você consumir o produto anunciado, irá de fato ter aquela sensação. Por segundos, o cérebro se engana e você acaba comprando um produto que sabe que não vai te dar aquilo, mas o cérebro precisa se iludir, até mesmo como uma maneira de aliviar o estresse que se vive no dia a dia. Entretanto, tudo isso é feito de modo muito sutil.
ZH - É algo que deve exercer grande influência sobre as crianças.
Ana Beatriz - O grande perigo disso é a formação do mercado consumidor infantil. Hoje, cerca de 80% das compras de um lar sofrem alguma influência direta das crianças. E nunca se investiu tanto no mercado consumidor infantil. O motivo disso é que a criança entre seis e 10 anos não distingue o que é a programação do que é o anúncio da televisão.
Então, quando ela vê alguém dizer que ao comer um superbiscoito com supervitaminas irá ficar forte e ser querida pelos amigos, aquilo é uma verdade para ela. E ainda precisamos considerar que a maioria dos pais não tem um tempo hábil para ficar com seus filhos, filtrando esse tipo de informação. Hoje, a maior indústria que o mercado publicitário quer é a indústria infantil porque, além de gerar um consumo imediato entre os pais, também cria o consumidor do futuro, que certamente será um consumidor voraz. Hoje ouvimos adolescentes falando que "necessitam" de um determinado tipo de smartphone ou seja lá o que for e ele fala isso porque é como o cérebro dele vê ou foi educado para ver.
ZH - A senhora também observa consequências políticas e sociais desse comportamento.
Ana Beatriz - Vejo isso totalmente, independentemente de partidos políticos. É claro que também sofremos por conta da economia de mercado. Nunca tivemos tamanha produção de bens e nunca tivemos tanto dinheiro. Seria até uma bobagem dizer que a crise de 2008 foi econômica, foi uma crise de valores éticos, uma grande mentira em cima de dinheiros inexistentes que foi sendo repassada. Os grandes milionários do século passado seriam hoje considerados pobres. A família Roosevelt, em seu auge, tinha US$ 1 milhão. Hoje, um garoto vende o Facebook por US$ 16 bilhões.
Nunca o capitalismo se mostrou tão ágil para produzir, isso é inquestionável, e, por outro lado, nunca tivemos tanta violência, tantas pessoas doentes e tantas compulsões. Alguma coisa realmente está errada com esse sistema. E esse sistema também gera outra cilada: além de sermos consumidores, todos nós somos transformados em produtos a serem consumidos. Essa talvez seja a coisa mais trágica, embora muita gente não se dê conta. Toda vez que você vira uma mercadoria a ser consumida, precisa estar sempre em forma, com a melhor roupa, melhor grife, melhor corte de cabelo, melhor plástica, melhor corpo, caso contrário, você será um produto que sairá do mercado.
ZH - Ou seja, a produção de bens não é uma garantia de bem-estar social.
Ana Beatriz - Até uns 20 ou 30 anos atrás, existia uma máxima que dizia que quanto mais poder aquisitivo se dá para uma população, mais feliz ela será. Até hoje, essa continua sendo uma verdade defendida pelos mercados de forma veemente. Mas, cientificamente, sabe-se que isso é uma grande mentira: foi provado que, até determinado ponto, a felicidade de fato tem uma influência material, mas apenas até o ponto em que se dê condições materiais para que as pessoas tenham educação, saúde e vestuário - o básico, aquilo que chamei de consumo primário.
A partir do momento em que essas necessidades básicas estão satisfeitas, esse crescimento em felicidade deixa de ser retilíneo. A parcela material da felicidade, que a gente calcula ficar entre 40% a 50%. Já de 50% a 60% da felicidade não têm nada a ver com a questão material, e sim com outras coisas nas quais o sistema está falhando muito. Cientificamente, a única verdade é que, quanto mais o poder aquisitivo de uma sociedade cresce acima de suas necessidades estruturais e básicas o que aumenta é a violência e a corrupção.
ZH - A senhora também observa que o comportamento compulsivo tem levado muitas pessoas ao endividamento.
Ana Beatriz - Há pouco vi uma matéria que aponta que cerca de 50 milhões de brasileiros estão endividados. Esse é um número oficial, de pessoas que estão devendo para bancos ou cartão de crédito, e isso significa que pelo menos mais 20% ou 30% desse número está endividado e a gente não sabe porque as pesquisas não conseguem pegar o agiota. Calculo que hoje há cerca de 80 a 90 milhões de brasileiros endividados, ou seja, quase a metade da população brasileira.
Me causa espanto que, depois dessa notícia, outra aponta que o governo decide liberar mais crédito para comprar carros e eletrodomésticos em uma política que insiste em fazer crescer a economia fazendo crescer o consumo. É uma matemática que não vai fechar. Fico me perguntando se, do mesmo modo que tivemos uma crise econômica em 2008, não por falta de dinheiro, mas por volúpia de se vender imóveis na sociedade americana, fico pensando se não estamos diante de uma grande bolha que vai explodir, independentemente de quem assumir a presidência.
ZH - A senhora acredita em alguma alternativa ao capitalismo?
Ana Beatriz - Longe disso. Mas acho que vamos ter que reinventar o capitalismo. De fato, não houve outro sistema que melhor pôde gerar a felicidade em sua porção material, mas errou na mão. No sistema atual, a sensação que dá é que tudo tem um preço. Se você quiser uma barriga de aluguel, por exemplo, você consegue na Índia com US$ 10 mil. Ou se você quiser um lugar na fila de um hospital no Rio, consegue por R$ 200. O capitalismo precisa se reinventar no sentido de preservar coisas que não têm preço, como moral e valores éticos.
ZH - Com base no que a senhora estudou a respeito do neuromarketing, é possível dizer que esses conhecimentos têm gerado campanhas políticas com um discurso cada vez mais esvaziado, vendendo candidatos como se vende produto?
Ana Beatriz - Totalmente. Seria preciso haver um órgão nesse capitalismo novo, que eu espero que surja, que realmente criasse critérios sobre o que poderia ou não ser publicidade política. Se você assiste uma propaganda política, pode deparar lá com um candidato a vereador dizendo que vai acabar com a violência, quando isso é algo de uma esfera federal e de toda uma sociedade, de mudanças de valores. São propagandas enganosas que chegam a ser agressivas, acintosas. Se propaganda enganosa é crime, não poderia haver publicidade eleitoral da forma que existe hoje. Quando posso, assisto ao horário eleitoral para ver quais são as propostas de governo, mas o que menos vejo são propostas.
ZH - No início da nossa entrevista, a senhora falou que trabalhava com tratamento de dependentes químicos, mas que isso estava se tornando cada vez mais frustrante. Por quê?
Ana Beatriz - Porque as drogas estão cada vez mais agressivas, potentes e sintéticas. Por exemplo, hoje não se planta maconha, hoje se fabrica maconha em laboratório. Há 20 anos, só havia uma possibilidade de alguém morrer por causa de maconha: um tijolo da droga cair do oitavo andar de um prédio na cabeça de alguém e matar por traumatismo craniano.
Parece engraçado, mas é verdade. Hoje, vejo garotos e garotas iniciando quadros demenciais de perda de memória, de raciocínio e funções cognitivas pelo uso de maconha. Aliás, não existe mais maconha, o que existe hoje é uma estrutura sintética 30 vezes mais potente do que era a maconha plantada. E há ainda as novas drogas, o ecstasy, o skunk, o crack... Hoje, a violência no Brasil inteiro explode muito relacionada ao crack. Viajo pelo Brasil inteiro dando palestras. A violência é a mesma de Sul a Norte, e o crack tem tornado essa violência mais agressiva e incisiva.
ZH - Diante desse cenário, como a senhora avalia a descriminalização da maconha?
Ana Beatriz - Olha, dessa maconha que tem aí é muito complicado... Não tenho como discutir sobre bases que estão todas erradas. Sou uma cidadã que pode discutir qualquer coisa, desde que se fale a verdade. Vivemos num faz de conta, não se discute que hoje existe uma violência extrema no país, que se mata por R$ 5 para uma pedra de crack. Não vi nenhuma campanha política falando disso.
ZH - A senhora acredita que é necessário ter um diagnóstico mais amplo em relação ao tema para depois poder debatê-lo.
Ana Beatriz - O Mentes Consumistas não existe apenas porque atendo no consultório pessoas descontroladas, viciadas em compras, e sim porque por trás desse consumismo há pessoas se enganando, achando que tudo é material. As coisas mais importantes na vida não são materiais, tanto que o último capítulo do livro pareceu a muitos mais um manifesto político do que parte de um livro científico. Mas acho que, independentemente da profissão que se exerça, você é antes de tudo um cidadão. Nesse capítulo pergunto: "Quanto vale a felicidade? Está na hora de rever nossos conceitos". Sem informação e sem conhecimento não há possibilidade de se rever nada. Uma das maiores acusações que recebo de colegas médicos é de que facilito demais o discurso, mas essa crítica é o melhor elogio que posso receber, pois o conhecimento precisa ser difundido.
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Compreender o funcionamento do cérebro humano exige anos de estudo e dedicação. Depois de completar esse ciclo, formando-se em psiquiatria, a carioca Ana Beatriz Barbosa Silva decidiu compartilhar seus conhecimentos com um público mais amplo.
Desde 2003, quando lançou Mentes Inquietas, Ana Beatriz conquistou mais de 1,5 milhão de leitores com livros em linguagem acessível sobre distúrbios psiquiátricos que afetam milhões de brasileiros, como bulimia, hiperatividade e autismo. Seus títulos também causaram polêmica - edições inteiras de Mentes Ansiosas e Corações Descontrolados foram recolhidas depois de acusações de plágio.
Agora, Ana Beatriz lança Mentes Consumistas, sobre uma compulsão contemporânea generalizada. Nesta entrevista, a psiquiatra fala sobre consumismo e outras doenças da nossa época.
Com a Palavra: Ivan Pinheiro Machado
ZH - Seus livros anteriores, Mentes Inquietas (sobre hiperatividade) e Bullying, tratavam de temas relacionados à psicologia que estavam ganhando crescente atenção no debate público na época de seus lançamentos. Por que a escolha do consumismo agora?
Ana Beatriz - Até o início dos anos 2000, eu tratava dependentes químicos. Foi quando começaram a aparecer as drogas sintéticas. Aí a sensação que me dava era de que eu estava secando gelo. As drogas passaram a ficar cada vez mais potentes e acessíveis, começavam a aparecer em qualquer esquina, tomavam de assalto as pessoas e as deixavam descontroladas.
Talvez tenha sido uma fraqueza minha, no sentido de não conseguir fazer nada e ficar muito frustrada com isso, mas passei a me dedicar mais aos transtornos de ansiedade, pânico, depressão, déficit de atenção, TOC, anorexia, bulimia... Foram os temas que fui desenvolvendo nos livros ao longo do tempo. O que ocorreu é que, nos últimos anos, percebi que uma gama de pacientes passou a chegar ao meu consultório relatando inicialmente depressão, mas quando passava a aprofundar suas histórias, notava que eram pessoas totalmente endividadas, descontroladas e desesperadas por consumo.
E era todo tipo de consumo: roupa, tecnologia, carro... Me dei conta de que estava tratando esses pacientes de modo muito parecido aos dependentes químicos. Pesquisei isso nos meus arquivos e percebi que havia 115 pacientes que chegaram relatando outras queixas, mas que, na verdade, tinham essa relação compulsiva e obsessiva com o ato de comprar. Ficava claro que havia algo importante ali. Fui catalogando isso, apresentei os dados aos meus pesquisadores e assim foi se delineando Mentes Consumistas.
ZH - Em que momento o ato de consumir pode começar a ser perigoso?
Ana Beatriz - Há basicamente dois tipos de consumo. O que chamo de "consumo primário" é aquele necessário para todos nós, para que possamos ter nossas necessidades básicas atendidas. Está relacionado a alimentação, saúde, moradia... Já o "consumo secundário" está ligado muito mais à nossa imaginação do que às necessidades.
E é aí que está o grande perigo: diferentemente de nossas necessidades, nosso imaginário é muito fácil de ser manipulado. Para o livro, comecei a pesquisar a influência do neuromarketing nesse tipo de consumo, o modo como os profissionais de marketing entendem de neurociência e do funcionamento cerebral para nos atrair e comprarmos o que não precisamos. O conhecimento do funcionamento cerebral leva profissionais inteligentes aplicados à publicidade e ao marketing a saberem como ativar áreas em nosso cérebro que fazem com que você use a imaginação para querer ou desejar coisas que, longe de serem necessárias, estão ali para determinar prazeres momentâneos que serão descartados por outros e fazerem você comprar cada vez mais.