Ao conversar com Alexandra de Navacelle de Coubertin, se nota que não apenas os genes físicos de Pierre de Coubertin foram transmitidos, embora o fundador dos Jogos Olímpicos da Era Moderna não tenha deixado descendentes diretos, mas, sobretudo, o DNA de suas ideias atravessaram o tempo. Alexandra é a presidente da Associação da Família Pierre de Coubertin, composta por familiares da quarta geração do Barão, e membra da Comissão de Cultura e Patrimônio Olímpico do Comitê Olímpico Internacional.
A entidade foi criada para fomentar os ideais que foram os pilares das Olimpíadas como conhecemos hoje e modernizar alguns dos pensamentos de Coubertin que, com o tempo, ficaram desbotados. Nesta conversa, Alexandra explica a ZH o papel dos Jogos na sociedade moderna, o peso de receber o evento, os pensamentos perenes de seu tio-avô e aqueles que precisam ser recontextualizados.
Vivemos em um mundo em constante mudança. Mesmo assim, muitos dos ideais de Pierre de Coubertin seguem vivos. Por que eles são tão duradouros?
Eles são atemporais. Quando você lê as palavras dele, elas seguem significativas hoje em dia. Ele tocou em algo que era humanístico e muito próximo do que é a essência humana. Entender como se dar bem com o outro e nos desenvolvermos melhor como humanos. Ele aborda muito o autoconhecimento, a educação. Ele foi muito inspirado pelo sistema grego de educação, que tinha uma abordagem muito equilibrada.
Os gregos tinham uma educação que era integrada por três dimensões: coração, corpo e espírito. Isso mudou com o tempo. Acho que muito porque as religiões queriam criar regras para que houvesse ordem. Separamos o espírito e a educação, o intelecto. Deixou-se o corpo completamente de lado, o esporte, a educação física. Então, o que acho que deixa seus pensamentos, seus escritos e suas intenções atemporais e relevantes hoje em dia é que ele toca em questões que são da natureza do homem. Toca em como você desenvolve a melhor versão de você mesmo em um ambiente pacífico, que integra outros como um time. Entendo que somos mais fortes juntos. Somos partes do mesmo. Somos apenas versões diferentes da humanidade.
Qual o papel dos Jogos Olímpicos em nossa sociedade?
Ele segue o mesmo. O que mudou foi o modo como abordam eventos sociais, políticos. Mas a intenção é a mesma. A intenção é ser um pouco a referência de como trazer paz para o mundo. Como manter a paz tendo uma série de regras? As regras que temos em torno dos Jogos Olímpicos são que, se você quer participar, você precisa segui-las. Existem todos esses protocolos importantes, como a trégua olímpica. Também rituais, como o juramento do atleta, em que se faz uma declaração de respeito às regras. Portanto, penso que são bons guardiões da paz e fornecem uma plataforma para o mundo se unir em paz com regras que, esperançosamente, podem ser uma referência para países e diferentes civilizações.
Mesmo assim, ainda vivemos em um mundo em constante guerra.
Vejo a questão de outra maneira. O que será que aconteceria se não tivéssemos os Jogos Olímpicos? O que aconteceria se não tivéssemos o esporte? Como seria o mundo? Para mim, eles (Jogos) fornecem uma pausa das guerras. Seja apenas durante os Jogos, ou por inspirar uma geração através de atletas que vêm de países diferentes, países em guerra. Esses países concordam em jogar juntos em nome de valores atemporais que citei. Os eventos esportivos servem para unir o mundo. Para que os participantes possam se encontrar e perceber que podemos nos dar bem, podemos jogar juntos.
Mas é irônico que na Grécia antiga as guerras paravam para os Jogos. Na Era moderna, os Jogos pararam para as Guerras.
Esse era o motivo para os Jogos. Segue sendo a razão hoje em dia. Será que perdemos a habilidade de impactar ou parar guerras? Não sou política nem juíza, mas sinto que isso mostra a importância dos Jogos Olímpicos e da paz. Todas as organizações internacionais que defendem uma causa, que criam condições para a paz, são cada vez mais necessárias. O mundo tornou-se um pouco mais inquieto e tenso por causa da velocidade da informação e o poder mudou, hoje temos as redes sociais.
As Olimpíadas deveriam ter uma estratégia diferente para manter a paz? Não sei. O que eu sei é que o tema segue importante, e os Jogos, de certa maneira, são uma razão, ou uma plataforma, para essas conversas, para se pensar nesses temas. Os Jogos Olímpicos devem evoluir com o tempo. Nunca foi feito para ser de uma única maneira. Veja Paris, teremos muitos esportes novos que refletem a mudança do tempo. O desafio dos Jogos ou de qualquer organização internacional é de se manter relevante com o passar do tempo. Como usar a língua de cada tempo? Como achar os porta-vozes corretos? Talvez essa seja a conversa que deveríamos ter, mas a relevância se mantém intacta.
Os Jogos Olímpicos são bons guardiões da paz e fornecem uma plataforma para o mundo se unir em paz com regras que, esperançosamente, podem ser uma referência para países e diferentes civilizações.
ALEXANDRA DE NAVACELLE DE COUBERTIN
Descendente do fundador das Olimpíadas
Como o COI deveria se portar com atletas russos, principalmente os que são contra a guerra?
Seja a Rússia ou qualquer outro país que não siga as regras dos Jogos, é importante o COI se manter firme e forte em relação a isso por ser o protetor das regras. As regras podem não ser perfeitas, mas são uma referência e são necessárias para se ter um diálogo. Se não tivéssemos essas regras, seria um pouco mais confuso e mais complicado. Há questões que não são permitidas. Não há guerra durante os Jogos. Claro, deveria não ter guerra nunca, não ter invasões, mas, ao menos, que não se tenha durante os Jogos. É preciso dar um exemplo para tentar assegurar que todos concorreram com algumas regras, com um pouco de paz.
É natural que, com o passar do tempo, alguns pensamentos sejam perecíveis. Há um trabalho na Associação para modernizar alguns pensamentos do Coubertin?
Sim. Na verdade, há uma grande campanha para esclarecer algumas palavras que faziam sentido naquele contexto, mas que hoje são difíceis de entender. Algumas mudaram, palavras que usávamos ao falar de colonização, sobre as mulheres ou sobre raças. Essas palavras têm um significado completamente diferente hoje. Enxergamos o mundo com uma lente diferente, vemos um lado diferente destas palavras. Então, é importante explicar alguns pensamentos que tinham a limitação do contexto da época e que não fazem sentido hoje. O incrível dos escritos de Coubertin é que muito do que foi escrito segue relevante. Quando ele fala sobre o espírito olímpico, sobre intenção, sobre a paz, isso segue relevante. Quando ele se posicionou sobre as mulheres e se posicionou sobre determinados esportes, nesses casos, precisamos esclarecer. Mas quando ele se expressava sobre um tema mais filosófico ou humanístico, esses são pensamentos imperecíveis.
O que será que aconteceria se não tivéssemos os Jogos Olímpicos? O que aconteceria se não tivéssemos o esporte? Como seria o mundo? Para mim, eles (Jogos) fornecem uma pausa das guerras.
ALEXANDRA DE NAVACELLE DE COUBERTIN
Descendente do fundador das Olimpíadas
Dentro disso, qual a relevância de, em Paris, a cidade de Coubertin, os Jogos terem o mesmo número de participantes homens e mulheres?
Isso é algo em que ele sempre foi criticado. Não é que ele estava errado, era apenas a fotografia do tempo dele. Nós mudamos. Acho importante que, no país do fundador dos Jogos, estabelecemos essas marcas. Ao termos a mesma quantidade de homens e mulheres competindo, mostra que os Jogos e as intenções dele podem realmente se ajustar ao tempo e continuar relevantes às necessidades do nosso século. Também teremos marcas nas questões sociais. Será a primeira vez que os logos dos Jogos Olímpicos e dos Paralímpicos serão os mesmos. Também há marcas nas questões ambientais. A eletricidade será 100% limpa. Então, é muito legal que 100 anos depois que os Jogos foram na França (pela última vez), o país do fundador, a gente tenha tantas marcas quebradas.
Para você, como mulher, qual o significado da igualdade de gênero nos Jogos?
É fantástico. Há países em que haverá mais mulheres do que homens competindo. Mostra que é possível. A Europa é um continente muito antigo e está apegado a regras antigas. Estamos, por exemplo, atrás dos EUA nisso. A cobertura da mídia dos esportes femininos é muito melhor lá. Estamos atrás, mas não só na cobertura esportiva, mas também na questão de empregos, representações políticas, salários. São muitos ramos em que estamos atrás. Estamos no caminho, há uma evolução, mas ainda há um percurso a ser percorrido.
Uma das ideias centrais de Coubertin era de que os atletas deveriam ser amadores, algo impossível hoje em dia. Como ser profissional sem ferir os valores olímpicos?
Um dos ideais é que não se pode ter a procura pelo dinheiro ou até mesmo pelas medalhas. O espírito é mostrar o melhor de você mesmo na questão humana, em questões como a paz. O amadorismo era uma maneira de garantir que não havia interesse financeiro, o que também dava uma chance a todo mundo. Era, em parte, uma inclusão e, em parte, um pensamento. Com o tempo e com o profissionalismo, houve uma sofisticação do esporte, uma melhora.
O desempenho foi incrivelmente aprimorado ao longo do tempo a um ponto que requer algumas regras e organização. Requer critérios de qualificação por muitas razões lógicas pragmáticas, como responsabilidade, saúde, contrato, todas essas coisas. Então não está ferindo muito (o espírito), se está sendo pragmático. Não há política envolvida por trás do incentivo aos atletas. Então, é isso que precisamos ter certeza de que está acontecendo para compensar o fato de que não se está mais aberto ao amadorismo. Se tornou um campo profissionalizado.
É importante explicar alguns pensamentos que tinham a limitação do contexto da época e que não fazem sentido hoje. O incrível dos escritos de Coubertin é que muito do que foi escrito segue relevante.
ALEXANDRA DE NAVACELLE DE COUBERTIN
Descendente do fundador das Olimpíadas
Os Jogos Olímpicos se tornaram um grande negócio. Como garantir que o espírito esportivo não seja interferido por isso?
Acho que o risco das Olimpíadas, o risco de qualquer coisa que se torne muito grande, é que se torne uma isca para lucros. É uma espécie de apelo inevitável para oportunistas. Então, eu acho que é um desafio. É algo que precisa ser monitorado, por isso no COI há a Comissão de Cultura e Patrimônio Olímpico para manter os princípios e a filosofia.
Há limites para como você pode garantir que eles sejam aplicados. Qual o critério para eu ser patrocinador? Você está fazendo isso para promover a marca ou por que acredita no espírito esportivo? Ou por que realmente deseja ajudar aqueles atletas refugiados ou está concretamente investindo seu dinheiro em algo que vai servir ao fim, ao atleta ou ao usuário final? É um desafio para tudo que se torna grande e popular. Como prevenir a ganância? Como monitorar potenciais abusos? É muito difícil e extremamente importante ter um guardião ético para garantir que tudo isso esteja em vigor, que seja impedido de acontecer.
No Brasil, os Jogos tiveram um legado menor do que era esperado. Por que há menos cidades interessadas em serem sedes dos Jogos?
Acho que é porque é preciso ter uma organização muito, muito grande. Há uma grande quantidade de trabalho a ser feito. Financeiramente, é algo que vai além, é maior do que qualquer país consegue organizar. É um grande tema. O que explica porque alguns países ficam apreensivos ou com medo de assumir a responsabilidade. Mas também existem vários países, como a índia e outros na África, que têm vontade de receber os Jogos. Receber os Jogos é uma incrível oportunidade de hospitalidade. Você recebe o mundo inteiro em sua cidade.
É uma chance de unir o país, de melhorar. É uma grande oportunidade para embelezar Paris, mas não apenas pela beleza, porque seria superficial, mas para tornar melhor para as pessoas que moram em Paris. Há uma grande quantidade de energia para colocar em funcionamento o transporte. Paris, como qualquer grande capital, sofre com a centralização e no resto do país não há acessos. Como criar essa mobilidade? Como dar acesso? Então, graças a Paris, estamos melhorando a mobilidade urbana e todo o sistema de transporte em um nível que não seria possível sem os Jogos Olímpicos. É isso que a Olimpíada faz acontecer. É uma ocasião para fazer melhor, estabelecer marcas e melhorar nós mesmos.
Penso que ter a filosofia olímpica ensinada nas escolas desde muito cedo poderia ser uma plataforma muito boa para a criação de uma linguagem universal, criando um conjunto de valores comuns que sejam humanísticos e universais
ALEXANDRA DE NAVACELLE DE COUBERTIN
Descendente do fundador das Olimpíadas
Existe por parte do COI um esforço para deixar os Jogos mais atraentes aos jovens. Como fazer isso?
O público de Pierre de Coubertin sempre foi de jovens. Ele sempre conversou com os jovens, eram a voz do futuro. Os jovens são o futuro do nosso planeta. Então, é importante dialogar com a juventude, entender as necessidades deles, engajá-los fazer sentirem que são parte disso. Na Comissão de Cultura e Patrimônio Olímpico, somos um coletivo de pessoas de muitos países, há uma representação internacional. Isso nos traz diferentes perspectivas sobre a juventude de cada região.
Dividimos iniciativas para ver como sermos engajados com a juventude. Como fazer com que eles se tornem parte interessada e que não sejam apenas destinatários, mas que sejam atores no compartilhamento da filosofia olímpica? Há uma iniciativa que fornece um conjunto de materiais educacionais que podem ser usados em escolas e universidades para conectar os jovens com o espírito olímpico e se envolverem no Movimento.
Dentro da questão dos jovens, se fala dos eSports. Eles são ou não esportes?
Esse é um campo que atrai muito os jovens. É um campo que devemos estar inseridos. O que o COI tenta fazer é estar envolvido, mas envolvido com regras e de um modo que seja muito consistente ao espírito olímpico. Envolvido com os valores como excelência, respeito e amizade. Como você traduz esses princípios orientadores e valores em outro tipo de esporte, como os eSports? É um exercício interessante e que certamente precisa ser pensado porque se conseguimos traduzir isso em excelência, como dar o melhor de si nos eSports, então o espírito está ali e é o que queremos. Assim como com o breakdance (nova modalidade olímpica), que é um canal para se expressar. O que precisa permanecer realmente sincero são os valores e a intenção.
Como tantos valores envolvidos, como fazer os Jogos se tornarem uma ferramenta educacional ainda maior?
Penso que ter a filosofia olímpica ensinada nas escolas desde muito cedo poderia ser uma plataforma muito boa para a criação de uma linguagem universal, criando um conjunto de valores comuns que sejam humanísticos e universais. Poderia ser uma simples aula de introdução à filosofia Olímpica, assim como há aulas de religião. Talvez possamos fazer da filosofia olímpica um tipo de religião.