O Brasil só começou a participar dos Jogos Olímpicos na sétima edição, na Antuérpia, em 1920. E neste domingo, o esporte brasileiro comemora exatos 100 anos da conquista de suas duas primeiras medalhas. Foi num 2 de agosto, no Campo de Beverloo, uma instalação militar localizada em Leopoldsburg, 20 quilômetros ao sudeste da sede principal do evento, que a equipe de tiro esportivo surpreendeu e garantiu dois pódios, com uma prata e um bronze.
O carioca Afrânio da Costa, advogado e diretor de tiro esportivo do Fluminense, na disputa da pistola de tiro livre 50 metros, ficou com a medalha de prata ao marcar 489 pontos, sete a menos que o norte-americano Karl Frederick, que levou o ouro, e oito a mais que outro atleta dos Estados Unidos, o experiente Alfred Lane, ganhador de três ouros nos Jogos de Estocolmo-1912, que ficou com o bronze.
A disputa contou com mais 21 atiradores, que tiveram seus pontos computados para a prova de equipes, disputada paralelamente. Desta forma, os 489 pontos de Afrânio da Costa foram somados aos 456 de Guilherme Paraense; 454 do alemão radicado no Rio Grande do Sul, Sebastião Wolf; além dos 441 pontos do gaúcho Dario Barbosa e os 424 do carioca Fernando Soledade, totalizando 2.264. Esta performance garantiu uma medalha de bronze, atrás apenas dos Estados Unidos, ouro com 2.372, e da Suécia, prata com 2.289.
— Temos que contar e exaltar a façanha destes personagens que foram pioneiros no esporte nacional — diz o presidente do Comitê Olímpico do Brasil, Paulo Wanderley.
E realmente a participação brasileira foi digna de ser chamada de façanha. Para chegar à Europa, a delegação composta por 21 atletas, teve que enfrentar uma viagem de quase um mês a bordo do navio Curvello, pertencente ao Lloyd Brasileiro. A saga foi contada no livro A História do Tiro Esportivo, de Eduardo Ferreira. A obra contém anotações de Afrânio da Costa e diversas fotos e recortes de jornais da época.
"Os atletas, de modo geral, contavam com o descrédito e a incompreensão de parte significativa da intelectualidade brasileira"
AFRÂNIO DA COSTA
Primeiro medalhista olímpico do Brasil
— As dificuldades foram, sobretudo, de ordem estrutural, técnica e econômica. Os atletas, de modo geral, contavam com o descrédito e a incompreensão de parte significativa da intelectualidade brasileira, que atacava o desporto pelos jornais e revistas, vendo nele uma ameaça à juventude e à sua formação, prestando-se mais aos desocupados e vagabundos — dizem os relatos de Afrânio da Costa.
Mas os dias navegando em "um navio de terceira classe, sem o mínimo conforto, com camarotes mais parecendo cubículos, sem ar, sem mobiliário e sem água", como descreveu Afrânio, não foram a parte mais complicada da saga dos primeiros medalhistas brasileiros.
Viagens de trem, armas roubadas e solidariedade norte-americana
No Velho Continente, após uma parada na Ilha da Madeira, em Portugal, a equipe de tiro descobriu que a embarcação não chegaria a tempo para as provas da modalidade. A solução encontrada foi desembarcar em Lisboa e rumar até Paris de trem. Na capital francesa, um novo trem até Bruxelas, de onde rumaram para Antuérpia também fizeram parte da aventura.
Aqui, mais uma vez as dificuldades se apresentaram. Se no Curvello, eles terminaram dormindo no chão do bar, "após a saída do último cliente", como pediram para o comandante da embarcação para que pudessem ter mais espaço para o descanso, nos trens eles precisaram viajar em "vagões abertos, expostos ao vento, ao sol e à chuva". Com todos esses componentes, a saga dos primeiros medalhistas olímpicos do Brasil foi encerrada com todos " sem dormir e mal alimentados, debilitados ainda mais pelo frio", ao meio-dia de 26 de julho, como descreveu Afrânio da Costa.
No trajeto final, os brasileiros ainda sofreram com mais um contratempo. Parte do material foi roubado em Bruxelas e eles desembarcam para a disputa com uma única arma e apenas 200 balas, embora precisassem de pelo menos 75 para cada um.
E é aqui que a história ganha um novo capítulo. Sensibilizado com a história dos sul-americanos, o chefe da delegação dos Estados Unidos, coronel Snyders, emprestou duas armas fabricadas pela empresa Colt especialmente para a competição. Os norte-americanos ainda brindaram os brasileiros com mil cartuchos 38, mil balas 22 e 50 alvos. A ajuda ocorreu logo após Fernando Soledade iniciar a disputa.
— A inferioridade da única arma livre que possuíamos em relação às aperfeiçoadíssimas dos nossos concorrentes não nos permitia ter esperança. Destaquei Soledade para atirar em primeiro lugar e o seu resultado ruim atestou imediatamente a inferioridade da arma, pois em revólver era um ótimo atirador. Nesta ocasião, o coronel Snyders, do exército americano e capitão da equipe de pistola livre me disse: "Sr. Costa, esta arma não vale nada, vou arranjar duas para os senhores, feitas especialmente para nós pela fábrica Colt". E voltou pouco depois trazendo duas belíssimas armas. Retificadas as armas por ele próprio, entregou-as desejando melhor resultado”— narrou Afrânio em seus apontamentos que estão descritos no livro A História do Tiro Esportivo.
E foi com elas e mais uma, que havia restado do material roubado, que o Brasil começou a escrever os primeiros capítulos de sua história olímpica.
Primeiro ouro
Um dia depois, em 3 de agosto, o tenente Guilherme Paraense, 36 anos, na prova do tiro rápido pistola militar 30 metros,conquistou uma surpreendente medalha de ouro, batendo Raymond Bracken, dos Estados Unidos, por apenas dois pontos (274 a 272). O bronze ficou com Fritz Zuluaf, da Suíça.
E depois de todos os percalços, o regresso para casa foi coberto de glórias.
— O retorno da equipe não foi mais no Curvello, triste e desfigurada “banheira” do Lloyd, porém, num navio decente, cheio de gente importante, com todas as passagens pagas pelo Governo Federal. Era um justo reconhecimento pelo memorável feito — escreveu Afrânio da Costa.
No começo de 1921, no Rio de Janeiro, o presidente da República, Epitácio Pessoa homenageou cada integrante da equipe de tiro com um placa de prata e ainda os recompensou com um total de 23 mil Réis (23:000$), sendo que Paraense ficou com 5 mil e os demais ganharam 3 mil, cada. Além dos integrantes da equipe medalhista, Demerval Peixoto e Mário Maurity também integraram o time, como reservas, e acabaram premiados.
—Podeis bem avaliar com que prazer entrego os prêmios que tão bem exprimem a nossa admiração, expressão eloquente da vida sã e do orgulho de todos os brasileiros — discursou o presidente na solenidade realizada na sede do Fluminense.
Ainda na Antuérpia, o Brasil participou dos saltos ornamentais, do remo, da natação e do pólo aquático, sem resultados expressivos. Porém, as três medalhas abriram uma contagem que até hoje contabiliza 129 pódios, com 30 ouros, 36 pratas e 63 bronzes conquistados em 15 esportes.
— Os Jogos de Antuérpia são apenas o primeiro capítulo de um belíssimo enredo construído pelos atletas brasileiros. São 129 medalhas e novos ídolos que surgem a cada nova edição de Jogos Olímpicos. Ao relembramos essa história e relembrarmos os feitos dos pioneiros, esperamos inspirar novas páginas da centenária e vitoriosa história olímpica do Brasil —diz o presidente do COB, Paulo Wanderley.
O feito da brava equipe de atiradores só seria repetido 96 anos depois, no Rio de Janeiro, quando Felipe Wu ganhou a medalha de prata na disputa da pistola de ar 10m.