A equipe de Esportes do Grupo RBS promove uma série de entrevistas para discutir os Jogos do Futuro em um cenário de incertezas para o esporte olímpico no mundo pós-pandemia. Nesta sexta-feira (24), conversamos com Andrew Parsons, jornalista, ex-presidente do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB), atual presidente do Comitê Paralímpico Internacional e membro brasileiro no Comitê Olímpico Internacional ao lado de Bernard Rajzman no conselho do comitê.
Como serão os Jogos de Tóquio em 2021?
O foco é a experiência dos atletas, preservá-la ao máximo, mas simplificando. Simplificar normalmente significa reduzir o nível de serviço em algumas áreas relativas aos Jogos. A gente está nesse planejamento, junto com o COI, com (o comitê organizador) Tóquio 2020, o governo nacional do Japão, o governo metropolitano de Tóquio, que vai até setembro, outubro. Serão os Jogos não só possíveis de entregar no ano que vem, mas os Jogos que vão também dialogar com algumas preocupações. Primeiro que o esporte não pode ser dissociado da realidade.
Por mais que você encontre uma vacina amanhã e consiga viabilizá-la para todo ser humano no planeta, o efeito econômico da pandemia já é evidente. Então não pode fazer Jogos que tenham uma grandiosidade exagerada, luxo, não cabe esse tipo de Jogos na situação pós-pandemia. Algumas diretrizes e princípios já foram aprovados. Esses Jogos, se se confirmarem para o ano que vem, vão ser símbolos de que o mundo deixou a pandemia e essa crise do covid-19 para trás.
E em relação ao interesse do público japonês?
Antes da pandemia, os níveis de entusiasmo, de empolgação com os Jogos era altíssimos, alguns dos maiores da história. Mas obviamente que, com a pandemia, as pessoas se perguntam se é uma prioridade olímpica entregar os Jogos, a ponto de dois candidatos que estavam concorrendo contra a governadora reeleita tinham em sua plataforma exatamente o cancelamento dos Jogos. Claro que é uma politização, mas também, se não houvesse alguma sintonia com parte da sociedade japonesa, ninguém usaria esse aspecto como plataforma. Então é preciso focar em resgatar o interesse do público japonês nos Jogos, sim. Uma parcela pode ter suas dúvidas se eles deveriam estar fazendo os Jogos sob as atuais circunstâncias.
Não há uma data considerada em que vai ser tomada a decisão (de manter ou adiar a Olimpíada em 2021). Óbvio que tem de tomar essa decisão alguns meses antes dos Jogos, como aconteceu esse ano.
ANDREW PARSONS
Presidente do Comitê Paralímpico Internacional e membro brasileiro no Comitê Olímpico Internacional
O senhor vê a possibilidade do cancelamento dos Jogos caso uma vacina não seja desenvolvida até o início de 2021?
Isso não tem sido discutido dentro do COI, do IPC e do (comitê) Tóquio 2020. Faço parte da comissão de coordenação do COI para os Jogos de Tóquio, temos representantes nessa força-tarefa, além disso temos nossa posição como IPC no dia a dia com Tóquio 2020. Não há uma data considerada em que vai ser tomada a decisão (de manter ou adiar a Olimpíada em 2021). Óbvio que tem de tomar essa decisão alguns meses antes dos Jogos, como aconteceu esse ano.
Temos um planejamento, essa discussão obviamente vai ser travada, mas vai ser travada mais para frente e no momento mais adequado, quando houve clareza maior. A vacina obviamente, no que diz respeito à pandemia, é a solução, mas também tem medidas que estão sendo tomadas por alguns governos para controle? Então obviamente a gente tem que aguardar para ver como ela vai se desenvolver até meados do ano que vem para a gente poder tomar uma decisão. Muito se diz que sem a vacina não há Jogos, obviamente eu não sou médico, não sou cientista, mas eu digo que existe também a questão da vacina, mas também do controle da pandemia. A vacina seria algo muito importante, mas talvez não seja tão indispensável para se ter os Jogos se os governos conseguirem, no mundo todo, controlar a pandemia com outras medidas.
Os paratletas terão mais dificuldade para retomar os treinos de alto nível e as competições?No IPC, a gente não tem nenhuma pesquisa que indica maior suscetibilidade dos atletas ou de pessoas com deficiência para adquirirem o vírus. É claro que algumas deficiências, em contraindo o vírus, se pode ter complicações maiores, caso de atletas que têm lesões medulares. Temos de nos cercar dos cuidados, aqui no Brasil existe um caso muito positivo que é o Centro Paraolímpico de Treinamentos, que voltou a receber atletas paraolímpicos recentemente, com alguns protocolos bastante rígidos na questão sanitária. Isso tem acontecido em outras partes do mundo também. Já têm atletas que voltaram a treinar, na Europa, em muitos países. Isso não seria tanto uma questão de o atleta ter ou não ter uma deficiência, mas da condição de enfrentamento da pandemia naquele país.
Uma das estratégias para dialogar com as novas gerações são esportes que têm mais apelo com a juventude. Outras iniciativas é buscar a juventude nos meios em que elas consomem informação. A linguagem também é importante.
ANDREW PARSONS
Presidente do Comitê Paralímpico Internacional e membro brasileiro no Comitê Olímpico Internacional
Como o senhor vê a possibilidade da retirada de modalidades dos Jogos e a introdução de outras, de mais interesse da juventude, como escalada, breakdance e surfe?
É importante que o movimento olímpico e paraolímpico se adequem aos novos tempos, às novas tecnologias, às novas tendências. Existe obviamente uma preocupação de o esporte se tornar menos relevante com o passar do tempo. Os índices de obesidade na juventude e de sedentarismo é muito grande. É importante frisar, não é que eles consumam menos esporte, eles praticam menos esporte ou atividade física de maneira geral. Uma das estratégias para dialogar com as novas gerações são esportes que têm mais apelo com a juventude.
Outra iniciativa é buscar a juventude nos meios em que elas consomem informação. A linguagem também é importante. Mesmo esportes tradicionais, como o remo, a forma como você se comunica pode chegar à juventude. Tem outro aspecto que é importante, algo que eu chamo do comportamento dos organismos esportivos. Durante muitos anos, a gente tem escândalos, corrupção. Cada vez mais a juventude busca se conectar com atividades, manifestações, entretenimento que tenham propósito, que tenham causa, que sejam mais transparentes. O comportamento das organizações envolvidas, a atitude delas, vai ser também importante para que o jovem se sinta conectado com aquilo. O jovem cada vez menos consome algo que venha de uma federação internacional, de um comitê, que já teve denúncias de corrupção, que esconda casos de doping.
Que mudanças a pandemia vai provocar no esporte de maneira mais ampla, tanto no olímpico quanto no paraolímpico?
Perde bastante. Sendo direto em um ponto específico, se os Jogos não acontecerem no ano que vem, vai ter uma situação muito difícil no movimento olímpico e paraolímpico internacional. A grande maioria das receitas dos dois segmentos vêm exatamente dos Jogos. São receitas de patrocínio, de direitos de TV, e são repassadas aos comitês, às federações internacionais, ao IPC. Nossas receitas têm como aspecto finalístico os Jogos. Já existe uma dificuldade com o adiamento, mas com o cancelamento realmente enfrentaria muitas dificuldades. Agora obviamente é uma situação nova e a gente tem de aprender com ela. Outras crises similares podem acontecer no futuro. Então, como a gente reage a isso, como vai ter a flexibilidade para reagir em situações semelhantes no futuro, que tenha interferência no critério de classificação para os Jogos.
O movimento esportivo internacional e nacional tem de se posicionar, tem de mostrar que o esporte não é só ouro, prata e bronze, que o esporte traz benefícios a curto, médio e longo prazo.
ANDREW PARSONS
Presidente do Comitê Paralímpico Internacional e membro brasileiro no Comitê Olímpico Internacional
O que essa crise pode deixar de lições?
Vejo alguns desafios, mas vejo oportunidades também. O esporte vai ser um aspecto muito importante para a retomada das atividades físicas. A saúde vai ganhar relevância na cabeça de praticamente todo cidadão no planeta, e a atividade física é de longe a melhor forma de ação preventiva, para ter uma condição de saúde melhor. As pessoas mais afetadas pela pandemia são aquelas que não têm uma situação tão boa de saúde, com comorbidades. O movimento esportivo internacional e nacional tem de se posicionar, tem de mostrar que o esporte não é só ouro, prata e bronze, que o esporte traz benefícios a curto, médio e longo prazo. No Brasil, a pandemia atinge comunidades mais carentes, mais pobres, áreas sem saneamento. As desigualdades foram ressaltadas pela pandemia, e com as pessoas com deficiência não é diferente. Espero que o mundo evolua, tenha essa oportunidade de refletir, mudar o nosso relacionamento com o planeta. O esporte traz a questão de união, igualdade, diversidade. A gente está sob essa discussão até dos protestos dos atletas em cima da crise racial nos EUA. O esporte tem um caminho importante na retomada. O esporte é mais do que entretenimento.
Como as políticas públicas brasileiras voltadas ao esporte paraolímpico têm refletido no desempenho dos atletas?
Historicamente o esporte paraolímpico tem grande relação com o poder executivo, com o poder legislativo. O esporte paraolímpico foi reconhecido em 1999, pela Lei Pelé. Foi, como se falava na época, a certidão de nascimento para o esporte paraolímpico. Depois com a aprovação da lei Agnelo-Piva, que destina recursos das loterias para o esporte, permitiu ao CPB planejar a curto, médio e longo prazos.
Desde a criação do Ministério do Esporte lá atrás (governo FHC, de 1995 a 2002), o esporte paraolímpico sempre teve o apoio necessário do governo federal e de alguns governos estaduais. Claro que o esporte paraolímpico sempre conquistou, com esses apoios que vieram, medalhas. Os atletas se tornaram mais conhecidos, foi um trabalho de comunicação importante. Essa percepção começou a ficar mais forte a partir de Atenas (2004). Aí culminou com a construção do CT, fruto com o governo federal com o governo de São Paulo. Hoje o CT é operado 100% com recursos do comitê. Então, acho que a gente não tem tanto para reclamar envolvendo os governos federais. Seria muito bom ver isso refletido em níveis estadual e municipal. A gente vê o encolhimento do número de secretarias de esporte no Brasil, é um sinal de alerta muito forte. Com isso, o paraolímpico também sofre. Em lugares no país, o esporte paraolímpico tem quase nenhuma ou até mesmo nenhuma atenção.
Como o senhor encara manifestações antirracistas em competições organizadas pelo COI e pelo IPC? Existe uma discussão em mudar o artigo 50 da Carta Olímpica, que proíbe manifestações políticas, religiosas e sociais nos Jogos.
É uma discussão muito interessante. A Carta Olímpica não regula os Jogos Paraolímpicos, mas temos uma versão no nosso estatuto muito semelhante. Começamos uma discussão que vai ser liderada pelo nosso conselho de atletas, porque a gente quer entender sobre o que os atletas querem falar, como eles gostariam de se manifestar, sobre o que eles acham que não deveriam se manifestar, enfim. Para que a gente também faça um processo educativo para eles na questão do nosso equivalente à regra 50. Existe muito conceito equivocado, que os atletas não podem falar nada. Na verdade, a regra 50 protege o pódio, não fala sobre entrevistas. O pódio é um momento máximo, sagrado quase, dentro dos Jogos. Se é muito óbvio, pelo menos para mim, de que o protesto antidiscriminação racial é absolutamente válido, a partir do momento que você libera para manifestação no pódio, vai ter de liberar para outros tipos de protestos, em que a gente considere ofensivo.
Como a gente se sentiria se um houvesse um atleta que se manifestasse no sentido de "white lives matter" (vidas brancas importam) ou "jewish lives doesn't matter" (vidas de judeus não importam)? É difícil para qualquer organização esportiva se colocar como um curador, sobre o que você pode protestar e o que não pode. Essa é a dificuldade, ninguém quer inibir atleta de se manifestar, mas também não transformar os Jogos em um veículo puramente político. Porque muitos atletas nos dizem: "Eu não quero ter uma posição política sobre tudo. Sou um atleta e quero competir. Não quero ter uma opinião forte, não me interessa nesse momento da minha vida. Também quero ter o direito de não me manifestar. Quero ter o direito de simplesmente aproveitar esse momento do pódio como atleta e não para ser um veículo para alguma causa e não ser criticado por isso". É uma questão que não é tão simples quanto parece. Para a gente, o lado do atleta é o que sempre mais importa.