A equipe de Esportes do Grupo RBS promove uma série de entrevistas para discutir os Jogos do Futuro em um cenário de incertezas para o esporte olímpico no mundo pós-pandemia. Nesta terça-feira (21), conversamos com Lars Grael, medalhista olímpico em Seul 1988 e Atlanta em 1996, consultor de diversas entidades esportivas brasileiras, palestrante e também ex-participante dos governos de Fernando Henrique Cardoso e Geraldo Alckmin.
Existe possibilidade de os Jogos de Tóquio serem cancelados?
Tendo a vacina já universalizada, devem acontecer de forma normal. Naturalmente deve deixar um legado do período de quarentena de isolamento, de afastamento. Normas de higienização podem ser incorporadas no novo normal. Não acredito que uma Olimpíada aconteça sem público, com restrição de atletas. Porque seria a melancolia dos Jogos e seria mais lógico cancelar e depositar as esperanças para um grande evento em Paris, em 2024. Estou otimista, a vacina deve vir e a Olimpíada será confirmada, acontecendo só um ano depois.
A organização do evento, que era uma cobiça dos países, uma verdadeira guerra para sediar uma Olimpíada, chega a um ponto que fica tão grande, tão cara e questionada pela população local, que os critérios de hoje para escolha (da sede) ficaram restritos.
LARS GRAEL
Medalhista olímpico em Seul 1988 e Atlanta em 1996, consultor esportivo de diversas entidades esportivas brasileiras e palestrante
Que mudanças a pandemia vai provocar no esporte, de uma maneira ampla?
Alguns impactos a gente já pode prever. Não apenas a pandemia, mas o universo do esporte olímpico vive dinâmica muito grande, com questionamentos sobre modalidades convencionais, se elas precisam continuar, uma vez que os Jogos foram se agigantando. A organização do evento, que era uma cobiça dos países, uma verdadeira guerra para sediar uma Olimpíada, chega a um ponto que fica tão grande, tão cara e questionada pela população local, que os critérios de hoje para escolha (da sede) ficaram restritos. Praticamente não existem mais candidatos. O COI avalia a necessidade de modernização, talvez suprimindo modalidades tradicionais, mas que hoje não tenham um grau de popularidade e (apresentem) um custo grande de promoção, com a introdução de modalidades modernas, que tenham conexão com a juventude. Mas já acenam com a modalidade de risco, que mexe com a integridade do atleta e que bota o quesito do compliance (conformidade) do esporte olímpico em luz amarela. Acidentes fatais com uma jovem escaladora (a francesa Luce Douady, 16 anos), o acidente da Sky Brown (atleta anglo-japonesa) com apenas 11 anos no skate. Acidentes que acontecem com frequência no surfe. Gera uma apreensão que para que não se traga risco para o atleta olímpico em uma competição. Impacto da covid, eu imagino que sejam as medidas da higienização que vão ser implementadas de uma forma a proteger mais o atleta competidor, a família olímpica e o público que assiste às competições.
Dois países estão sendo mais afetados pelo coronavírus, Brasil e Estados Unidos. O quanto esse período mais prolongado da doença vai prejudicar a preparação dos atletas olímpicos brasileiros?
Os EUA e o Brasil têm números absolutos (altos), mas os números relativos, número por milhão de habitantes, vários países europeus superam muito. O que mostra que o problema é global e ainda sob a ameaça dessa segunda onda, o que mostra que ela pode voltar em qualquer lugar. Esse processo de aumento e diminuição parece ser cíclico e o problema não se localiza só nesses países. A Austrália agora vem uma onda forte em Melbourne, inclusive com fechamento de divisas entre Estados. Com certeza, em alguns países os atletas não pararam de treinar, o que demonstram que esses países teriam uma vantagem a curto prazo, sobretudo no caso da China. Eles nunca pararam, alguns países como a Holanda também, as competições e os treinamentos se mantiveram quase na normalidade. Enquanto em outros países, parou. A ponto de o COB organizar uma viagem da elite da equipe olímpica para Portugal. Se o COI permitir essa condição de assimetria, isso afetará um dos pilares dos Jogos Olímpicos, o fair play. Se não houver fair play, a Olimpíada fica seriamente ameaçada. A posição de comitês-chave nesse caso será determinante para a tomada de decisão.
Na volta das competições, vamos verificar uma mudança no nível técnico, aqueles que fizeram de tudo para voltar em alto nível e aqueles que não treinaram e estarão defasados. Por isso que, para o fair play, essa liberação tem de ser global para que as pessoas tenham tempo de fazer o aperfeiçoamento até a Olimpíada.
LARS GRAEL
Medalhista olímpico em Seul 1988 e Atlanta em 1996, consultor esportivo de diversas entidades esportivas brasileiras e palestrante
Muitas atletas tiveram de parar de treinar. Como lidar com a ansiedade de adiar o sonho olímpico em um ano e com possível quadro de depressão nesse período?
Participei de uma live com o Gustavo Borges (ex-nadador e medalhista olímpico). Pela lógica do atleta de alto rendimento, ele disse: "Lars, eu vejo a ansiedade e a angústia de muitos atletas. Têm aqueles que encaram o período como férias, em que ele pode descansar, esse provavelmente vai voltar totalmente defasado tecnicamente e nada competitivo. Tem aquele que, em casa, vai fazer atividade física dentro daquilo que está disponível, vai ter dificuldade para voltar nas competições, mas pelo menos se mantém. Tem aquele que vai manter em casa uma disciplina de condição física, vai voltar tecnicamente defasado, mas fisicamente bem. Tem aquele que tem consciência de que nesse período em que quase todos estão parados, vai dobrar a sua meta, se ele tiver condições de dar um jeito de treinar mesmo que precariamente, ele vai dar um jeito. Esse vai voltar matando". Então é interessante ver essa lógica do atleta de alto rendimento, Gustavo disse que faria de tudo para dobrar suas metas e tentaria treinar dentro da piscina. Na volta das competições, vamos verificar uma mudança no nível técnico, aqueles que fizeram de tudo para voltar em alto nível e aqueles que não treinaram e estarão defasados. Por isso que, para o fair play, essa liberação tem de ser global para que as pessoas tenham tempo de fazer o aperfeiçoamento até a Olimpíada. Se for muito em cima, vai ficar visível que alguns países se preparam melhor. Por isso que a decisão do COI não é fácil, mas ela terá de ser tomada com a devida antecedência.
Os paratletas terão mais dificuldades para voltar aos treinamentos em alto nível e as competições?
Acredito que não. Os paratletas têm em média uma vulnerabilidade maior do que os atletas quando se fala no risco à covid-19, por exemplo não temos nenhum dado ou informação de atleta olímpico entubado e com óbito, porque eles têm uma imunidade maior. Muitos paratletas têm essa comorbidades, o que os deixam com mais vulnerabilidade, depende da deficiência, caso a caso. Mas existem paratletas brasileiros que foram vitimados nesse período. Então a apreensão do IPC (Comitê Paraolímpico Internacional) é maior, a liberação das competições, a tentativa de volta as competições tem de ter um cuidado maior.
Como consultor do Comitê Brasileiro de Clubes, como o senhor acredita que será a realidade dos clubes formadores de atletas nesse mundo pós-pandemia?
O CBC vem tentando fazer uma estratégia para dinamizar os clubes, porque a covid tem sido muito cruel para os clubes em geral. Isso envolve ONGs com seus projetos, as Forças Armadas, as academias de ginástica, e os clubes não são diferentes. Alguns clubes fizeram cortes drásticos. O Pinheiros (SP), até por mudança política, fez um corte maior, o que é preocupante, porque é um clube que é uma indústria de formação de atletas olímpicos no Brasil. Então o CBC está lançando nesse momento dois novos editais de chamamento público, um para recursos humanos na área técnica, treinadores, e outro que será lançado no segundo semestre para aquisição de material esportivo, para tentar mitigar os impactos da pandemia nos clubes. É suficiente? Provavelmente não, mas é um alento em momento que falta recurso. A preocupação que o CBC demonstra com essa situação da pandemia e de clubes fechados, esse impacto é muito grande e ainda não foi medido na sua magnitude.
O esporte tem de ser visto como aspecto de saúde, não só social, mas econômico. Hoje, o esporte está desvinculado disso, o que é um equívoco
LARS GRAEL
Medalhista olímpico em Seul 1988 e Atlanta em 1996, consultor esportivo de diversas entidades esportivas brasileiras e palestrante
O senhor trabalhou nos governos do presidente Fernando Henrique Cardoso e do governador Geraldo Alckmin em São Paulo. Como as políticas públicas brasileiras voltadas ao esporte têm refletido no desempenho dos atletas?
O Brasil teve um avanço ao longo dos tempos, não só dando atenção maior ao esporte olímpico através da organização de grandes eventos, muito mais em investimento em infraestrutura esportiva. No entanto, teve um equívoco, que foi o esporte se isolar das políticas públicas da área social. O esporte nunca deveria ter se afastado das políticas públicas de educação. Educação nunca será plena no Brasil se não tiver a valorização do profissional, do professor de educação física, das aulas de educação física na frequência necessária e na conexão da educação com o esporte. Ao mesmo tempo, em plena pandemia, estamos discutindo as políticas de saúde pública, mas ao meu ver o Ministério da Saúde sempre foi o da doença. Tem o SUS, toda a rede médico-hospitalar, médico da família, farmácia popular, mas o que se faz no Brasil de política de saúde preventiva? Então a conexão de um programa nacional de nutrição seria fundamental, erradicar a fome e melhorar a qualidade de nutrição no Brasil, mas sabemos que é deficiente. O segundo aspecto, que foi aprovado no Congresso, o marco regulatório do saneamento básico. A ausência do saneamento é o maior vetor de contaminação no país, num país que 17% nem sequer tem acesso a água potável. Como você vai dizer para o cidadão se proteger da covid lavando as mãos se ele não tem nem água, onde 50% da população não tem esgoto tratado. O terceiro aspecto é o combate ao sedentarismo, em um país onde a gente vê um nível de obesidade crescendo. Já comprovadamente pela OMS se fala que cada dólar investido na população, o mesmo Estado vai economizar de US$ 3 a US$ 5 em saúde. O esporte tem de ser visto como aspecto de saúde, não só social, mas econômico. Hoje, o esporte está desvinculado disso, o que é um equívoco.
Que mensagem o senhor deixa para o atleta que vai a Tóquio representar o Brasil?
Aquele atleta que julgava que não tinha uma chance em um cenário normal, ele pode ter esperança de que provavelmente após a pandemia o eixo de favoritismo vai se alterar um pouco. Então é o momento do atleta dar o máximo de si e acreditar na sua chance. Aquele que já tinha chance de medalha, que acredite nela. É momento de crença, de superação. Mexe com os brios, o orgulho do atleta para que ele possa se dedicar e dar o seu máximo em busca do objetivo maior: a medalha olímpica.