Longe do alcance e da gravidade atingidos pelo esquema institucional da Rússia, que resultou na exclusão dos atletas do país de todas as competições por quatro anos, incluindo a Olimpíada de Tóquio e a Copa do Catar, o doping é uma sombra que também ameaça o jogo limpo no Brasil. No segundo semestre de 2019, uma série de casos acendeu o alerta das autoridades envolvidas no combate às fraudes no esporte. Desde julho, nomes como os de Beatriz Haddad Maia (tênis), Gabriel Santos (natação), Maria Clara Lobo (nado artístico), Andressa de Morais (atletismo), Kacio Freitas (ciclismo) e Jorge Zarif (vela) foram associados ao uso de substâncias proibidas.
Mas nenhum episódio teve tanta repercussão quanto o teste que detectou a presença de doping no organismo da judoca Rafaela Silva. Flagrada no Pan-Americano de 2019, a campeã olímpica e mundial perdeu a medalha de ouro conquistada em Lima e, no último dia 23, foi suspensa por dois anos pela Federação Internacional de Judô (IJF). A atleta ainda promete recorrer ao Tribunal Arbitral do Esporte (TAS), mas a tendência é de que, a menos de seis meses da Olimpíada, uma das principais esperanças de ouro do Brasil não pise nos tatames do Nippon Budokan.
O Comitê Olímpico do Brasil (COB) acompanha com atenção o caso de Rafaela e lembra que a atleta de 27 anos sempre foi submetida a exames antidoping, até então com resultados negativos.
— Sempre preocupa ver uma atleta olímpica, ídolo em que muitas crianças se espelham, nessa situação. É com tristeza que recebemos uma notícia como essa — disse à coluna o médico Christian Trajano, gerente da área de educação e prevenção ao doping da entidade.
O COB, que não tem papel de fiscalização, passou a intensificar ações de orientação a atletas e treinadores a partir de 2018. Em outubro, o comitê disponibilizou em seu site a lista atualizada de substâncias e métodos de dopagem proibidos pela Agência Mundial Antidoping (Wada) — as regras entraram em vigor em 1° de janeiro. Neste ano, a entidade vai investir em torno de R$ 2,5 milhões em projetos que incluem o lançamento de uma plataforma digital que permitirá a consulta, por exemplo, de medicamentos que podem ou não ser usados pelos atletas.
A Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD), vinculada à Secretaria Especial do Esporte, do governo federal, atua em duas frentes: na aplicação de testes antidoping e em iniciativas de prevenção e educação. No primeiro pilar, a entidade chefiada há seis meses pela ex-ginasta Luisa Parente planeja intensificar a fiscalização de atletas que vão participar da Olimpíada. Em 2019, foram realizados 8.697 testes, com 59 casos positivos.
Tão importante como essa ofensiva, de acordo com a secretária, é a necessidade de ampliar o conhecimento de todos os agentes envolvidos no esporte de alto rendimento, dos atletas aos treinadores, das nutricionistas aos fisiologistas. Segundo Luisa, até mesmo familiares mais próximos dos competidores devem ser alvo de abordagens. Tudo para evitar suposta dopagem inadvertida ou involuntária:
— O atleta pode até não ter a intenção (de obter vantagens ilícitas com substâncias proibidas), mas isso não afasta dele a responsabilidade objetiva pela violação da regra. Se o atleta tem mais consciência, mais informação e está mais alerta aos riscos, terá mais comportamento preventivo.
"Antidopagem é sinônimo de ética"
Ex-ginasta com experiência em Jogos Olímpicos (finalista em Seul 1988 e participante em Barcelona 1992), Luisa Parente chefia a Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD) desde agosto. Em entrevista, a secretária nacional fala sobre ações para fiscalizar e conscientizar os atletas no combate à trapaça no esporte. Confira.
Quais são os maiores desafios da ABCD em um ano olímpico?
— Na área de operações, que lida diretamente com o controle de dopagem, seguimos um plano criterioso. Temos muita atenção com o grupo alvo de teste (formado por atletas da elite, que são submetidos com maior frequência a controles de dopagem fora de competição e, por isso, precisam fornecer informações de localização a cada trimestre) e as modalidades de risco (esportes com maior incidência de uso de substâncias proibidas), não só com os resultados que o Brasil vem tendo, mas também ao cenário internacional daquela respectiva modalidade. Avançamos muitos, e queremos manter esse status, em parcerias com federações internacionais no acompanhamento de atletas desse grupo alvo de teste. A ABCD e as federações internacionais, que também são autoridades de testes (antidoping), mantêm relação estreita em eventos no Brasil ou no Exterior para troca de informações, e isso é muito importante.
Há outras ações previstas?
— Em relação à área de educação, a gente não pode parar também. A nossa programação e o nosso planejamento para a educação antidopagem são perenes. Também temos grupos de prioridade, como o dos próprios atletas que estão se preparando para os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos. É um grupo que tem uma abordagem muito específica, mais técnica, rigorosa e profunda. Por exemplo, entramos em detalhes de procedimentos de coleta e de responsabilidades e direitos dos atletas de forma mais direta e objetiva. Com a grande comunidade esportiva, como jovens atletas em formação, vamos abordando os temas conforme o público, o momento, o contexto. Se estamos em jogos escolares, por exemplo, a abordagem é mais didática. Não aprofundamos tanto, mas damos uma pincelada nos valores do esporte. Porque, no fundo, antidopagem é sinônimo de ética.
Três atletas que subiram ao pódio no Pan de Lima 2019 perderam as medalhas por doping, entre elas Rafaela Silva. Esses e outros casos recentes preocupam a ABCD?
— Sim. Seguimos em alerta e em parceria mais próxima possível com os comitês olímpico e paraolímpico. Adquirimos recentemente as traduções dos cursos online da Wada (Agência Mundial Antidoping), e com isso a intenção é capacitar melhor a delegação que vai para os Jogos. A gente lamenta os casos ocorridos, é claro. A nossa estratégia é de aproximação com os comitês olímpico e paraolímpico, como integrantes de uma rede brasileira antidopagem. Esse é o nosso lema. Precisamos que todos sejam corresponsáveis pelo jogo limpo.
Como ex-ginasta e hoje autoridade no controle de dopagem, qual é a sua posição sobre casos em que alegadamente não houve intenção do atleta de se dopar?
— Do ponto de vista jurídico, é uma questão que chamamos de responsabilidade objetiva do atleta. Testou, flagrou, deu positivo, ele vai responder a processo. O atleta pode até não ter a intenção, mas isso não afasta dele a responsabilidade pela violação da regra. O que nos move é a educação antidopagem. Se o atleta tem mais consciência, mais informação e está mais alerta aos riscos, ele vai ter mais comportamento preventivo.
Estamos evoluindo no combate ao doping? A sensação é de que o controle de dopagem está sempre correndo atrás da trapaça no esporte.
— Isso acontece e é dito pela própria Wada. Os avanços tecnológicos são grandes, em toda parte. A medicina corre atrás da doença. É um pouco parecido. O próprio sistema internacional antidopagem é relativamente recente, a Wada foi fundada em 1999. A base de tudo são os valores do esporte. A gente está lutando por isso permanentemente.
O Brasil vai passar em branco no controle de dopagem em Tóquio?
— Essa é a meta (risos). A meta é zero. Mas isso não depende dos nossos desejos. Cada vez que acontece, a gente volta atrás para avaliar junto com as confederações, como no Pan, por exemplo. O que aconteceu? Por que esses atletas tiveram esses resultados (positivos para doping)? Tem alguma coisa que podemos melhorar?