Acostumado a competir — e conquistar medalhas — em mares distantes, Robert Scheidt iniciou a preparação para o ano olímpico em solo gaúcho. Ou melhor: nas águas do Guaíba. Desde o dia de 4 janeiro, o multicampeão da vela está singrando pela zona sul de Porto Alegre com o objetivo de manter a forma e aprimorar a técnica na classe laser de olho nas grandes competições previstas no calendário de 2020: o Mundial de Melbourne, de 9 a 16 de fevereiro, e os Jogos de Tóquio, que começam em 24 de julho.
Na corrida para o Japão, os dois eventos estão conectados. Se nenhum outro brasileiro subir ao pódio na Austrália no mês que vem, o paulista de 46 anos garantirá a vaga para sua sétima Olimpíada na carreira, que será recorde de participações no Brasil. Com o 12º lugar obtido no Mundial de Sakaiminato (no Japão), em julho de 2019, Scheidt foi o primeiro velejador do país a obter o índice técnico de classificação para Tóquio.
E caso confirme seu lugar na equipe brasileira, ele terá a oportunidade de desempatar um disputa particular com o também velejador Torben Grael. Se terminar entre os três primeiros nos Jogos, se tornará o primeiro atleta do país a conquistar seis medalhas olímpicas.
É bem verdade que a estada programada até terça-feira (14) na capital gaúcha foi motivada, em primeiro lugar, por razões afetivas. Erik, o primogênito de Scheidt, está disputando o Campeonato Brasileiro da optimist — espécie de classe-escola da vela — organizado pelo clube Veleiros do Sul. Inspiração para o menino de 10 anos seguir nas competições não falta em casa. Além da penca de medalhas olímpicas e em Mundiais colecionadas pelo pai em três décadas, as conquistas da mãe indicam que uma nova dinastia da vela pode estar surgindo.
Casada com o brasileiro desde 2008, a velejadora lituana Gintare Volungeviciute foi prata no laser radial em Pequim 2008 e campeã mundial da classe em 2012. O casal, que mora no badalado Lago di Garda, no norte da Itália, tem outro filho, Lukas, seis anos — ainda não iniciado na modalidade.
O forte calor dos últimos dias no Estado, acredite, foi bem-vindo por Scheidt em seus treinos no Guaíba.
— O clima é similar ao que vamos enfrentar no Japão (na ilha de Enoshima, localizada na baía de Sagami, durante a Olimpíada). O Japão é muito quente e úmido (em julho e agosto, no verão do Hemisfério Norte). Treinar aqui em Porto Alegre no verão é mais próximo às condições do Japão do que estar na Europa ou em qualquer continente frio. Para adaptação do corpo, é muito bom — revela.
Para ajudar nos treinamentos e simular o cenário de regatas, o campeão montou um grupo com outros seis velejadores, entre eles Philipp Grochtmann, atleta de 25 anos do Veleiros do Sul. O gaúcho tirou bom proveito da presença de Scheidt em Porto Alegre:
— Ele está sempre velejando com muita intensidade, é muito competitivo. Foi uma baita oportunidade para a gente se espelhar e fazer o nosso melhor. Além disso, o Scheidt conversa bastante, dá muitas dicas, não é de guardar informações.
Na quinta-feira, o vejador teve o único dia de folga desde que desembarcou na Capital. No final da manhã, Robert Scheidt recebeu a coluna e o colega Fernando Becker, repórter da RBS TV, no Veleiros. Leia os principais trechos da conversa abaixo:
Depois da Olimpíada no Rio, onde foi quarto lugar, você anunciou que não iria mais participar dos Jogos. Por que decidiu voltar às competições?
Eu tinha realmente anunciado que iria sair da vela olímpica. Muita gente confunde aposentadoria com a saída da vela olímpica. A vela é um esporte que se pode praticar pela vida inteira. Dá para disputar regatas de barco oceânico e outras modalidades, por exemplo. Ainda estou muito longe de parar de velejar.
O que ainda o motiva a velejar nas grandes competições?
Na metade de 2018, um grupo de velejadores e amigos estrangeiros foram competir no Lago di Garda. Eles me chamaram para participar de treinamentos. Surpreendentemente, com poucos treinos, velejei bem. Também me senti bem fisicamente. Ali comecei a acreditar que ainda daria para fazer mais uma Olimpíada. O ano de 2019 foi de readaptação à classe. Não tive resultados expressivos, mas consegui cumprir os índices impostos pela confederação de vela e pelo COB para classificação olímpica. Mas o mais importante é que pude ver que estou evoluindo novamente numa classe em transformação, porque houve mudanças em parte dos equipamentos, com mastro e vela diferentes, uma nova geração competindo. Tenho uma série de desafios pela frente, mas o principal é que o meu corpo ainda permite que eu faça isso. Quero ver até onde posso chegar. Vejo isso não como pressão por medalha, mas como uma grande oportunidade de me colocar com chances de disputar uma medalha mais uma vez na minha carreira. Quantos atletas sonham um dia em participar de uma Olimpíada? Então, poder ter a chance de chegar à minha sétima Olimpíada é um privilégio muito grande. Isso não significa que quero ir apenas por participar, quero ir para ser competitivo. Tenho um grande trabalho para fazer para chegar ao nível de jogar por uma medalha.
A sua ambição é subir ao pódio na Olimpíada?
Não faria esse retorno à classe se não achasse que teria chance. No momento em que o atleta acredita que não pode chegar lá, ele realmente não vai chegar lá. Vai ser mais difícil? Vai. Mas as chances podem ser criadas. Acho que uma das vantagens desta vez é que provavelmente vou chegar à Olimpíada não como um dos favoritos. Vou chegar, digamos assim, como um "outsider" (franco atirador, em tradução livre). Isso pode gerar um pouco mais de expectativa para aqueles que são os prováveis favoritos a medalhas. Em uma Olimpíada muita coisa pode acontecer, e surpresas acontecem. Quero chegar lá tranquilo para fazer o meu melhor.
Nenhum atleta com mais de 35 anos subiu ao pódio na laser nas Olimpíadas. Você ainda pode se tornar o maior medalhista olímpico do Brasil. Isso também o motiva?
É claro que todo atleta gosta de quebrar recordes. Mas para mim sempre foi mais (importante) o processo, de me colocar em chance de brigar por mais uma medalha, e não olhar para trás e pensar em quantas (medalhas) foram... É legal, mas não é o objetivo principal, não é o que me motiva.
Pelo fato de acompanhar seu filho em Porto Alegre no Brasileiro de optimist, você inicia o ano olímpico treinando no Guaíba. O que você pode tirar de proveito de circunstância na preparação para Tóquio?
Primeiramente, o clima é similar ao que vamos enfrentar no Japão. O Japão é muito quente e úmido. Treinar aqui em Porto Alegre no verão é mais próximo às condições do Japão do que estar na Europa ou em qualquer continente frio. Para adaptação do corpo, é muito bom. Depois, conseguimos montar um grupo de treinamento com cinco, seis velejadores de bom nível, simular regatas. As condições do Guaíba são variáveis, o barco boia um pouquinho menos porque aqui tem água doce. Por isso é mais difícil imprimir velocidade, exige uma técnica mais apurada. Isso tudo fez a semana ser muito produtiva, a gente passou muitas horas na água, enfrentou todas as condições. Foi um excelente início de ano fazer essas sessões de treinamentos aqui.
O que você ainda precisa melhorar e ajustar para a Olimpíada?
Dentro da velejada em flotilhas grandes, de alto nível, tem sempre algumas coisas. Por exemplo, o momento da largada. Quando você veleja em grupos pequenos, não existe uma dificuldade tão grande porque são poucos barcos. Mas no momento em que se coloca 50, 60 barcos em uma linha de largada, você tem muito menos espaço. Então, esse momento da largada da regata dificilmente você consegue simular, é preciso participar de competições grandes para ganhar ritmo. A velejada do vento em popa (parte de trás da embarcação) sempre foi um ponto forte meu, mas nesse ciclo olímpico estou tendo um pouco mais de dificuldades, até porque o mastro mudou, a vela mudou. Ainda estou em processo de ajuste na minha técnica para essa mudança de equipamento. Ainda não está 100% redondo, preciso automatizar isso. O laser é um barco muito de intuição, de feeling. Quando você está muito treinado e preparado não precisa pensar em fazer o barco andar veloz, ele anda veloz automaticamente. Você só está preocupado com o que está ao seu redor e com o próximo movimento tático que vai fazer na regata. Então, automatizar isso tudo e transformar a velejada em uma coisa mais fluida é o meu objetivo para a Olimpíada.
O que mudou do velejador que despontou ouro olímpico nos anos 1990 para o Robert Scheidt de hoje?
Quando se tem 20 anos, você pode realizar um volume de treinamentos muito maior. Você dorme e no dia seguinte está recuperado para fazer tudo de novo. Treinava muitas horas por dia... bicicleta, natação e musculação, e muitas horas de vela. Meu corpo respondia muito bem a isso. Hoje, com mais idade, tenho mais experiência e sou um atleta tecnicamente melhor do que era antes. Sei muito mais coisas, estou mais preparado para (suportar) a pressão. Então, se ganha de um lado, mas perde um pouco de outro.
O atual ciclo olímpico teve injeção de quase 50% a menos de dinheiro público no esporte em relação ao período entre Londres 2012 e o Rio 2016. Qual avaliação do momento e do futuro do esporte brasileiro?
O importante é como os recursos são aplicados. Às vezes, se tem menos recursos, mas se aplica melhor o dinheiro, e o resultado acaba sendo superior. Temos uma geração boa, muitos jovens entrando para esse ciclo olímpico, novos esportes entrando para a primeira participação olímpica. Surfe, skate, são modalidades em que o Brasil tem grande potencial de medalhas. Tem também o fortalecimento dos clubes, com os convênios da CBC (Confederação Brasileira de Clubes). Isso ajuda na aquisição de material, a ter uma estrutura melhor. Falo por mim, fui formado em um clube, o Yacht Club Santo Amaro, que é um celeiro de campeões. A estrutura que tive foi importante para me desenvolver, também porque eu tinha o espelho dos campeões dos clubes, como o Alex Welter, que foi medalhista olímpico. As geração que me antecederam passaram informações para mim, eu vi que era possível pegar uma medalha. Viver esse ambiente é muito saudável.
Como você vê a participação dos atletas no Comitê Olímpico do Brasil e nas demais entidades? Estamos evoluindo?
Estamos evoluindo, sim. Tanto as federações quanto o COB têm as comissões de atletas. É muito saudável que atletas tenham um peso nas decisões. No final, são eles que vão representar o Brasil. Cada vez mais o atleta tem de ter voz. Também é muito saudável que, dentro do Comitê Olímpico do Brasil, tenha muitos ex-atletas em postos importantes. Isso faz da pessoa um dirigente muito mais preparado porque ele viveu o outro lado também.
Você é um velejador experiente, mas também é um pai experiente? Como é ver o filho velejar e competir?
Tento não interferir no que ele está fazendo. Todas as instruções vêm do treinador dele, que é um velejador muito experiente, o (gaúcho) Alexandre Paradeda. Se ele tem uma dúvida e me pergunta, vou lá e respondo. Ele tem só 10 anos, está começando a trajetória na classe optimist, está gostando de velejar, está feliz no barco, está aprendendo e melhorando. O importante é ele curtir esse momento e fazer muitos amigos. Quando a gente vê um grande erro, pode fazer um comentário aqui e ali, mas não pode ser aquele pai chato, que fica o tempo inteiro falando, passando 1 milhão de instruções. Porque isso não funciona, geralmente o atleta pesca uma ou outra instrução. No fundo, na vida a gente aprende muito errando. Tem coisa que ele vai ter de errar e sentir na própria pele para aprender. Por isso o esporte é lindo, ninguém começa ganhando. Você tem de aprender a perder antes de ganhar. Vejo a alegria dele no barco, é a coisa que me deixa mais feliz. Ele está lá, sorrindo, aprendendo, já é muito competitivo.
Mas carregar o sobrenome Scheidt vai ser uma responsabilidade e tanto para ele no esporte, não? Você já percebeu que há mais cobrança e pressão sobre o Erik?
Ele está lidando muito bem com isso. Claro, há o peso do nome, mas ele está tranquilo em relação a isso. Ele está aproveitando a parte boa desse nome. Todo pai quer ver o filho tendo bons resultados, mas o principal ele está fazendo, que é praticar um esporte saudável, perto da natureza, estudando bastante. Estudar e fazer esporte são as coisas mais importantes que quero para meus filhos.
Você se vê nele, no teu início na vela?
A paixão pela vela, ele pegou. Em nenhum momento a gente teve de dizer: "tem treino, vamos lá". Ele já coloca as coisas dele na sacola e vai para o clube. Até em situações extremas de frio, de chuva, ele vai para o clube e quer velejar. Nem todas as crianças são assim. Têm muitas crianças que o pai precisa dar aquela puxada, para animar... o Erik, não, ele tem essa vontade de estar em um barco. Isso é o fundamental.
Erik é filho de dois campeões mundiais na classe laser. Que características ele puxou da mãe e quais herdou do pai?
Eu sou um pouco mais "adrenalizado", vamos dizer assim, nas competições. A mãe é muito calma, então ela passa tranquilidade para ele. Eu passo mais a questão da raça, da vontade, da determinação. É um mix bastante saudável. Ela também é uma velejadora extremamente experiente, capaz, tem uma medalha olímpica, foi campeã mundial. O que muitas vezes a gente tem de dar um puxão de orelhas nele é para estudar. Como ele acaba usando muito tempo para o esporte, veleja, joga futebol, sobra pouco tempo para fazer a lição de casa.
O CURRÍCULO DO CAMPEÃO
5 medalhas olímpicas
- 2 ouros na classe laser (Atlanta 1996 e Atenas 2004)
- 2 pratas (Sidney 2000, no laser, e Pequim 2008, na classe star)
- 1 bronze na classe star, em Londres 2012
Títulos mundiais
- Laser: 11
- Star: 3