Quando virou um ex-jogador, Pelé se aventurou por várias áreas, participou de filmes, novelas, gravou música, virou garoto propaganda, mas foi quando trocou a camisa pelo terno e gravata, o calção pela calça social e as chuteiras pelo sapato que deixou o seu legado mais palpável fora dos campos. Entre janeiro de 1995 a maio de 1998, atuou como ministro dos esportes e causou uma revolução no futebol brasileiro. A Lei Pelé, formulada durante sua gestão e que entrou em vigor em 2001, é considerada como a Lei Áurea do futebol.
Embora a legislação abarque todo o esporte brasileiro, a norma atingiu com maior vigor o futebol. A partir de 26 de março daquele ano, o passe foi extinto. A partir daquele momento, quando um contrato entre um atleta e uma equipe chegava ao fim, ele estava liberado para assinar com outra agremiação.
Até então, mesmo que o acordo chegasse ao fim, o vínculo permanecia, mesmo que os dirigentes tivessem débitos com os atletas. O documento foi inspirado pela Lei Bosman, que terminou com a existência do passe no futebol europeu em 1995.
— A Lei veio equilibrar todas as relações. Os dirigentes sempre foram coronéis. Todos os jogadores foram beneficiados. Os clubes tiveram de se adequar — explica Gislaine Nunes, advogada especializada em direito desportivo.
A batalha pela queda do passe era antiga. O primeiro jogador a ter passe livre foi o meia Afonsinho, que, com uma ação judicial, se liberou do Vasco em 1971. O problema de então, era que, mesmo liberado, o atleta ficava marcado entre os dirigentes por sua rebeldia.
Responsável por desvincular mais de mil atletas, Gislaine se tornou referência no assunto. Um dos primeiros jogadores a cortar as amarras dos clubes foi o goleiro Alexandre Buzzetto. Ela conta que nos primeiros casos levava versões encadernadas da Lei para mostrar aos juízes. Muitos torciam o nariz e afirmavam que a Justiça Desportiva era a responsável pelo tema, porém se rendiam aos argumentos da advogada e julgavam o caso.
O caso de Buzzetto foi emblemático. Durante os debates da formulação da legislação e da tramitação do texto, temia-se que a medida beneficiasse apenas os grandes nomes. Com cartaz, as estrelas não teriam problemas para serem contratadas por alguma equipe. Havia receio de que jogadores menos renomados tivessem o desemprego como destino.
— Eu estava preso ao Nacional (de Ribeirão Preto). Consegui o passe e recebi o que me deviam. Me senti livre. Não se tinha autonomia, o clube comandava a tua vida. Logo depois de pegar meu passe, fui comprado pela Parmalat. Foi maravilhoso. Sem a lei, eu teria ficado preso e não me deixariam sair — relata o ex-goleiro.
Outro temor estava atrelado aos clubes. Principal fonte de renda das agremiações, imperava o medo de que as sempre combalidas finanças ficassem piores com a extinção do passe. Um dos mais virulentos contra Pelé e sua lei foi Eurico Miranda, ex-deputado e ex-dirigente do Vasco e principal expoente da Bancada da Bola, formado por um grupo de deputados ligados ao futebol. Morto em 2019, ele nunca aceitou a derrota. Aos poucos, as retrancas foram quebradas pelo ex-camisa 10 para aprovar a nova legislação esportiva.
— Não fosse Pelé o condutor da Lei, ela não teria passado com essas mudanças — afirma o ex-governador Germano Rigotto, presidente da Comissão da Lei Pelé. — Ele recebeu o sinal verde dos clubes. Foi aprovada por unanimidade. Todos os setores foram ouvidos durante o processo — complementa.
CBF e Fifa também faziam coro contra as mudanças. João Havelange, então presidente da entidade máxima do futebol, ameaçou tirar o Brasil da Copa de 1998. Assim como fez em campo, nada parou o ministro Pelé de marcar mais um gol.
A Lei Pelé
COMO ERA
- O jogador ficava preso ao clube pelo passe;
- Os jogadores ganhavam 15% do valor da transferência;
- O restante do valor ficava com o detentor do passe do jogador, fosse clube ou empresário;
- Jogadores com menos de 18 anos podiam ser negociados com times de outros países sem restrição;
- Os contratos tinham duração mínima de três meses e máxima de quatro anos;
- Jogadores com menos de 18 anos podiam se transferir para outro país sem restrição.
COMO FICOU
- O passe deixou de existir;
- Os jogadores ficavam livres ao término do contrato;
- O contrato tinha duração máxima de cinco anos;
- O primeiro contrato profissional passou a ser aos 16 anos;
- Os jogadores perderam o direito aos 15% nas negociações;
- Uma taxa de transferência dos atletas, de 5%, fará parte de fundo destinado aos clubes formadores de jogadores;
- O jogador com menos de 18 anos só muda para outro país com autorização do governo.
Casos emblemáticos
Antes de a Lei Pelé vigorar, havia um mecanismo que era acionado quando o acordo entre clube e jogador expirava e não havia acerto para um novo contrato. O passe ficava preso junto à federação estadual até que as partes chegassem a um denominador comum ou uma outra equipe comprasse o passe. A situação causou duas situações inusitadas na história da dupla Gre-Nal.
O caso mais emblemático é o do ex-volante Batista. Homem de palavra, ele acertava seu contrato verbalmente com a direção colorada. Os termos de seu novo vínculo com o Inter estavam acertados, mas em abril de 1981 ele quebrou a perna em um jogo contra o Sport. Em meio à recuperação, o presidente José Asmuz propôs mudanças oferecendo um valor salarial menor. A redução não agradou o meio-campista. Não houve acerto, e o passe parou na Federação Gaúcha de Futebol (FGF).
No fim do ano, o Grêmio foi até a FGF, depositou US$ 1 milhão e passou a ser dono do passe do jogador da Seleção Brasileira, além de pagar polpudo salário para Batista.
O outro caso acabou com as chances de o goleiro Alberto jogar a Copa do Mundo de 1970. Passaram-se dois anos entre abril de 1969, quando entrou em litígio com o Grêmio, e se encontrou uma solução para a situação. Naquele momento, o defensor tinha três convocações recentes para a Seleção. O status lhe dava a perspectiva de fechar um bom contrato. A direção gremista tinha outros planos.
A pedida para firmar um novo vínculo era de um salário de menos de 50 salários mínimos (algo na casa de R$ 60 mil hoje em dia), mais um terreno na Avenida Getúlio Vargas de luvas. O Grêmio não aceitou, não cedeu nas negociações e, logo, Alberto se deu conta de que o Gre-Nal de inauguração do Beira-Rio fora seu último jogo sob a meta tricolor.
— Depois daquela primeira reunião, não houve mais diálogo. Minha vida teria sido bem diferente, mas não me arrependo de nada. O terreno custava pouco, o salário não era tão grande. Eu estava lutando por um bom contrato — relembrou em entrevista a ZH, em 2001.
Morto em 2012, Alberto teve seu passe fixado em US$ 87,5 mil, valor alto para goleiro naquele período. Ele voltou a jogar somente em 1971 quando foi cedido ao América-RJ. Aos 33 anos, não repetiu as mesmas atuações e sofreu lesão no menisco. Se a Lei Pelé existisse na época, talvez aquele Brasil de 1970 tivesse Alberto protegendo Tostão, Pelé, Jairzinho e companhia.
A volta do passe
A relação entre clubes e jogadores pode mudar em breve. Tramita no Congresso o Projeto de Lei 3353/21, de autoria do ex-presidente do Sport e deputado Luciano Bivar (União-PE). A proposta prevê a revinculação entre as agremiações e os atletas, recriando o passe.
O texto também indica outra modificação importante. O primeiro contrato entre jogador e o clube poderá ser feito aos 14 anos. A atual legislação permite que o primeiro acordo entre as partes seja formalizado a partir dos 16 anos.
"Com o passe livre, fragilizou-se o vínculo clube-atleta, facilitou-se a transferência dos atletas profissionais e produziu-se um eldorado para empresários do mundo esportivo. Estes herdaram os lucros que antes eram dos clubes pela formação dos atletas", argumenta Bivar na justificativa do projeto.
— Se a mudança for aprovada, será um retrocesso absurdo. Um dos problemas também é que os atletas não são unidos — avalia Gislaine.
O documento foi aprovado pela Comissão do Esporte da Câmara dos Deputados no fim do ano passado. Agora, passará por análise das comissões de Trabalho, de Administração e Serviço Público; e de Constituição e Justiça e de Cidadania.