Sentado em uma confortável poltrona branca, Pelé, com os braços apoiados nas laterais do móvel, inclinou o corpo à frente, baixou o tom da voz e, em um timbre macio, cantou. “Você diz a toda gente / Que eu sou moreno demais / Não maltrate o seu pretinho / Que lhe faz tanto carinho / E no fundo é um bom rapaz”.
Seu companheiro de cantoria era Chico Buarque. A cena do dueto de Preconceito faz parte do DVD O Futebol, lançado em 2006. A passagem colabora na desmistificação de que o Rei do Futebol, morto no fim de 2022, fez pouco no combate ao racismo. Especialistas na defesa da causa negra consultados por GZH são unânimes ao assegurar a importância do ex-jogador nessa batalha. Mesmo se não tivesse se manifestado, ele seria um ícone no tema pela simples razão de ter existido.
Pelé surgiu para o estrelato na época dos “pés tolerados na roda de samba”, como cantou Milton Nascimento. O preconceito se estendia ao pé de obra negro no futebol. Era um período de esbranquiçamento na Seleção Brasileira, onde Pelé, Garrincha e Djalma Santos amarguraram o banco de reservas nas primeiras partidas na Copa do Mundo de 1958. O espaço de idolatria cavado por Leônidas da Silva na década de 1930 foi soterrado pela perda do título da Copa de 1950. O fardo da derrota caiu sobre os ombros do goleiro Barbosa, o lateral Bigode e o zagueiro Juvenal. Todos negros. A cor da derrota era preta.
— (O título) foi uma nova revolução da presença negra no futebol brasileiro. O futebol ganha um patamar que não havia sido visto. O país entrou em um estado de comoção diante daquela vitória — avalia Angélica Basthi, autora do livro “Pelé: estrela negra em campos verdes”.
Os gols, sempre decisivos, os dribles e a astúcia de Pelé ajudaram a desimpregnar o preconceito nas análises. Enquanto os brancos eram vistos como inteligentes e táticos, os negros eram taxados como brutos e indisciplinados.
Exemplo
Os feitos abriram a possibilidade para que os negros se vissem como capazes. O preto se desvinculou da derrota para se aliar à vitória.
— Talvez ele não tivesse ciência da importância dele para a questão. Vê-lo em posição de destaque, contribuiu para que as pessoas negras tivessem mais autoestima. Nos víamos em posição de subordinação, e quando ele aparecia sendo reconhecido como alguém que fazia com excelência a sua atividade, nós todos nos sentíamos elogiados e capazes de fazer o nosso papel de maneira satisfatória — explica Jorge Terra, diretor de relações institucionais do Instituto Acredite, voltado para políticas antidiscriminatórias.
Ainda assim, sempre houve cobrança para que Pelé adotasse uma postura mais incisiva no âmbito racial. Terra enfatiza que Pelé teve o auge da carreira durante o período da ditadura militar, o que inibia manifestação explícita. O gol mil também é visto como um marco. Rodeado de microfones, com todos os holofotes sob si, ele foge da autobajulação. Opta por pedir que olhem para as crianças pobres.
— Quando ele fala que das crianças desassistidas, ele está sendo incisivo — argumenta Terra.
Se ainda não era considerado explícito o bastante, Pelé foi em 14 de novembro de 1995 – em 1988 ele havia feito parte da campanha dos 100 anos da abolição da escravatura. Então ministro dos Esportes, ele abriu as portas do seu gabinete para representantes da Marcha Contra o Racismo. A caminhada seria realizada seis dias depois e homenageava os 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares. O político ilustre serviu como um garoto propaganda do evento.
— Queríamos dar visibilidade e colocar a Marcha na mídia. Ele não só nos acolheu, como nos escutou e se emocionou um bocado. Ele era inspirador. Não precisava de discursos contra o racismo para influenciar nessa briga. Com ele, passa a existir a possibilidade de realização da cidadania plena, da igualdade de direito para o negro — enfatiza Edson Lopes Cardoso, secretário-geral do movimento e autor do livro Nada os Trará de Volta.
Em entrevista após a recepção, Pelé afirmou que para o negro crescer socialmente no Brasil era necessário votar em negros para que a raça fosse defendida no Congresso. Também relacionou os políticos com a corrupção e ressaltou que “o negro não carregava essa marca”. O posicionamento irritou Luis Eduardo Magalhães, o então presidente da Câmara, que prometeu fazer uma guerra contra o ídolo.
A Marcha ganhou força e reuniu uma multidão em Brasília. No fortalecimento da imagem do negro no Brasil e no Mundo, Pelé também marcou seus golaços.
Memória precisa ser mantida
Nas gôndolas dos supermercados, o Diamante Negro é visto apenas como uma barra de chocolate. Há quase nove décadas, quando foi lançado, ele era mais do que uma guloseima. Tratava-se de uma homenagem a Leônidas da Silva, principal jogador do futebol brasileiro, apelidado com o nome com o qual o doce foi batizado. Quantos sabem desta história? Quantos conhecem o peso de Leônidas para o futebol brasileiro?
Essa é uma das preocupações de Cardoso com a morte de Pelé. Com o passar dos anos, ele teme que o baú da memória onde será guardada a história de Pelé vá se esvaziando e todo o esforço feito pelo Rei na universalização da imagem do negro brasileiro seja perdido.
— Ele passava essa postura de dignidade, de realeza. Então, é importante preservar a memória dele, mas não só nos museus, mas nas conversas, no dia a dia. Quando não se cultiva a memória, ela vai embora — observa Cardoso.
Os 20 anos que separam o auge de Leônidas e o surgimento como um Rei do Futebol, trazem vantagens ao mais novo. Embora parte da coletânea de jogadas do camisa 10, entre elas o gol mais bonito de sua carreira, não tenha imagens, boa parte de sua carreira está documentada. A outra diferença é óbvia. O Diamante Negro foi enorme, mas não foi Pelé.
— Os feitos dele são mostrados mais vezes, são lições transmitidas mais vezes e de maneira mais eficaz. Não creio que se perca essa memória. Os movimentos que ele criou, os ângulos que ele achou são copiados até hoje — contrapõe Terra.
De imediato, diversas entidades entenderam a necessidade de reverência ao ex-jogador. No Brasil, ruas foram rebatizadas com o nome de Pelé. A Fifa pediu que cada federação afiliada tenha, ao menos, um estádio em seu território que leve o nome do maior ícone da história do futebol. Até aqui, Cabo Verde, país lusófono como o Brasil, e a vizinha Colômbia atenderam ao pedido. Que seja só o início da eternidade de Pelé.
Todo preto tem um pouco de Pelé
Rodrigo Moraes, editor de texto do Esporte da RBS
Alvinegro, alviverde, rubronegro, tricolor ou alvirrubro. Nem todos homens pretos brasileiros são santistas, mas todos eles já foram um pouco de Pelé. Uma coisa é certa, existe um Brasil de representatividade antes de Pelé e outro depois de Pelé.
Nos dias de hoje, Pelé é parte da memória de uma geração, uma lembrança tão poderosa que o sentimento foi de sua presença ainda estar em campo.
Edson Arantes do Nascimento tem uma trajetória de momentos controversos. Cito aqui, uma frase de Martin Luther King, “os negros são humanos, não super-humanos, como qualquer povo, possui personalidades diversas, interesses financeiros e aspirações distintas”.
Mesmo assim, Pelé era Rei. Rei como todos aqueles da história que carregam dualidades. Rei, diferente de todos aqueles da história, que ousou construir uma trajetória majestosa em um dos países mais racistas do mundo. Homem preto que dignificou um país. Este mesmo país que segundo o Atlas da Violência 2021, realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a cada mil vítimas de homicídio, 777 são negras. Mesmo assim, elevou o nome de um país destruidor de corpos negros, assim como o dele.
Pelé ao longo de sua história tem uma frase antológica, “eu nunca tirei minha pele pra jogar”. Ninguém fala desse Pelé, ninguém viu manchetes de jornal na época com essas frases. Nós sabemos que muitos dos mais antigos se negam a falar sobre racismo, mas isso fala muito mais sobre contexto do que sobre convicção.
O Rei não se limitava, lançava falas fortes como na época em que foi ministro, “o sinônimo político do brasil é corrupto, e o negro não carrega essa marca. Então negros deviam votar em negros”. E fica a pergunta: qual o espaço de um atleta se declarar antirracista no Brasil atual sem ser silenciado? E mais, qual era o espaço para se declarar antirracista no Brasil na época do Pelé?
Para ele, não importava. Se posicionou. Afinal, silenciar suas posições como ativista político era interessante. Já pensou dar ênfase ao maior atleta da história, negro, para além de um jogador de futebol? Impensado e perigoso. Independentemente do silêncio, sua saída foi um posicionamento político, foi um posicionamento na luta racial. Falar sobre tudo o que acontece hoje, na época das redes sociais, é muito complexo. Vivemos em tempos binários. Você é tudo ou nada. Perfeito ou reduzido.
O episódio da filha, que o público tem como costume mencionar e é importante não ser esquecido, é um assunto que toca todos que tiveram uma vida marcada pela ausência paterna. É uma tragédia. E infelizmente é parte de uma tragédia muito maior que o Edson. Segundo os dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com base no Censo Escolar de 2011, há 5,5 milhões de crianças brasileiras sem o nome do pai na certidão de nascimento, sem contar todas aquelas que possuem o registro e não os tiveram presentes.
Celebrar o Pelé nunca foi sobre negar sua trajetória. Mas sim, enaltecer a figura conciliadora que, em 1969, parou uma guerra civil no Congo Belga, entre as forças do Congo-Kinshasa e Congo Brazzaville para estarem pacificamente no mesmo estádio para ver Pelé jogar. O mesmo que aconteceu dias depois, quando o governo da Nigéria assegurou que não haveria confronto na região de Biafra enquanto o Santos estivesse no país.
A capacidade de Pelé e o seu exemplo de diplomacia espalhado pelo mundo é de um legado de distribuir autoestima para a população negra. Além de todas as conquistas que impactaram o mundo do futebol, o Rei estabeleceu-se definitivamente como um propagador de transmissão aos corpos negros que a luta não se encerrou. Ele fez com que gerações de homens pretos pela primeira vez terem algo que a história negou: sonhar em ocupar um lugar de excelência.
Pelé é o tipo de pessoa que merecia o prêmio máximo em meio a tudo que ele representou e gerou de sentimentos: ser percebido apenas como ser humano, ou até mesmo, como todos nós.