São, pelo menos, 80 casos de racismo ocorridos no futebol brasileiro em 2022, de acordo com levantamento feito pelo Observatório da Discriminação Racial no Futebol. Esses são apenas os registrados. Há tantos outros que não entram nas estatísticas. Às vésperas da Copa do Mundo fica ainda mais difícil compreender como ofensas desse tipo ainda são ouvidas durante os jogos. Neste ano, o 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra, coincide com a abertura da Copa do Catar.
Nos cinco Mundias ganhos pelos Brasil sempre houve a presença marcante de negros em campo. A genialidade de Pelé em 1958. A habilidade de Garrincha em 1962. A eficiência de Everaldo em 1970. O faro artilheiro de Romário em 1994. A magia de Ronaldinho Gaúcho em 2002. Os cinco são os personagens deste ano da série Nossa Voz, projeto do Grupo RBS que tem como objetivo ampliar o combate contra o racismo. O primeiro personagem é Pelé.
A sociedade se move pelas camadas da pele conforme as circunstâncias. Quando o negro se destaca, ela vai até à hipoderme, o subsolo do maior órgão do corpo humano. Ali a coloração parece não importar. Nessa parte da anatomia, todos são cor de carne. Foi assim com Leônidas da Silva, primeiro popstar do futebol brasileiro. Craque dos anos 1930, tinha a pele escura a ponto de terem batizado o chocolate Diamante Negro com o seu apelido. A homenagem era uma espécie de aceitação de um negro de sucesso em um mundo branco.
Outros não tiveram a mesma sorte. Os tons escuros da pele voltaram a incomodar no momento em que as decepções surgiram. A primeira sobrancelha erguida apareceu após a final da Copa de 1950, quando o Brasil perdeu o jogo decisivo para o Uruguai em uma suposta falha do goleiro Barbosa — somente em 2006 o Brasil voltaria ter um goleiro negro como titular em uma Copa. Zagueiros naquele jogo no Maracanã, os negros Juvenal e Bigode carregaram uma parcela menor do fardo.
— Fizeram uma caça às bruxas. Não se procuraram razões estruturais. Buscaram culpados. Coincidentemente ou não, os culpados eram negros. Se criou a ideia de que jogadores negros eram instáveis emocionalmente. Se pensava, na opinião racista, que a instabilidade psicológica dos negros prejudicava o time — relata Fábio Mendes, autor do livro “Campeões da raça – Heróis negros da Copa de 1958”.
O “recrudescimento” do preconceito se agravou ainda mais em 1954, quando os jogadores brasileiros protagonizaram cenas de pugilato depois da eliminação nas quartas de final para a Hungria, no que ficou conhecida como a Batalha de Berna. Chefe da delegação Brasileira na Suíça, Lyra Filho escreveu um relatório sobre a participação da equipe. O insucesso no torneio recebeu um desfile de razões bem similares às justificativas de quatro anos antes. As mais pesadas, na visão do dirigente, foram a falta de controle emocional e menor instrução da equipe brasileira.
— No futebol brasileiro, o rendilhado vistoso confere expressão de arte à prova, em prejuízo do rendimento e do resultado. A exibição compromete a competição. Fácil será confrontar a fisionomia de um selecionado brasileiro, constituído de pretos e mulatos em maior número, com a fisionomia do futebol argentino, alemão, húngaro ou inglês — destacava o documento.
Os fatos que se seguiram no primeiro título do país em 1958, na Suécia, mostram o contrário. O time de Vicente Feola foi esbranquiçado. O único negro na escalação das duas primeiras partidas era o incontestável Dida, cujo reserva também era negro. Garrincha e Pelé entraram na equipe somente no terceiro jogo, contra a União Soviética. No duelo anterior, a Seleção empatou em 0 a 0 com a Inglaterra, confronto em que o loiro Mazzola chorou em campo após perder um gol — as lágrimas voltaram a lhe correr a face no vestiário. Djalma Santos, outro ícone do futebol brasileiro, inexplicavelmente estreou somente na final. Os 90 minutos foram suficientes para o lateral-direito entrar na seleção daquela edição.
Um mito se desmancha
Os relatos de que os negros eram psicologicamente inferiores aos brancos ruiu no exato momento em que o time esteve em desvantagem na final contra a Suécia. Após o gol do adversário nos primeiros minutos, Didi pegou a bola e caminhou lentamente com ela até o centro do campo. No caminho, pediu calma aos companheiros e reforçou a autoestima afirmando que os brasileiros eram melhor jogadores.
Pelé, então com 17 anos, marcou dois gols no 5 a 2 sobre os suecos. Um deles uma obra prima da história da Copa ao aplicar um balãozinho e chutar de primeira para vencer o goleiro. No segundo, abusou com um passe de calcanhar e marcou o gol com o ombro.
— O Pelé faz parte dessa nova revolução da presença negra no futebol brasileiro. Ele faz um marco no futebol. Os dirigentes ainda tinham um olhar racista em relação aos jogadores negros. O título demarcou o novo lugar que o jogador negro passa a ocupar perante a sociedade brasileira. Os jogadores ganharam esse status de heróis. Para os jogadores negros, teve o impacto forte de refazer a leitura do negro do futebol brasileiro. Eles foram integrados à elite brasileira, mas ainda não deixaram de ser tratados como negros — argumenta Angélica Basthi, autora do livro "Pelé: estrela negra em campos verdes".
O preconceito sempre andou em volta do Rei do Futebol. Na adolescência, ele teve uma namorada branca. A moça apanhou do pai por namorar um negro. Durante a campanha de 1958, uma torcedora sueca apontou para os jogadores brasileiros e mostrou surpresa por eles falarem, em uma associação do negro com os animais.
Em uma excursão do Santos por Senegal, a recepcionista branca do hotel onde os santistas estavam disse que os negros que tentavam se aproximar dos atletas eram selvagens. Ela foi presa pela polícia e pediu para que Pelé testemunhasse a seu favor. O camisa 10 se negou a defendê-la.
O ato foi um tímido posicionamento de Pelé na briga contra o racismo. Seu engajamento sobre o tema aumentou nos últimos anos. Desde o caso Aranha, em 2014, sua posição se modificou e ele tem se manifestado contra casos de racismo.
— Pelé é resultado do mito da democracia racial que ainda impera no país. Começou a alterar um pouco a sua fala. A construção da figura do Pelé perpassa a questão do racismo. Agora, o Brasil passa a perceber o negro como um fator estruturante do desenvolvimento do país e da democracia brasileira — avalia Angélica.