Sebastião Arcanjo, o Tiãozinho, é o único presidente negro entre os 40 representantes das séries A e B do Brasileirão. À frente da Associação Atlética Ponte Preta, de Campinas, o segundo clube de futebol mais antigo do país ainda em atividade, ele é uma das pessoas mais engajadas na luta antirracista.
Foi deputado estadual pelo PT, partido do qual saiu após divergências. Mesmo afastado da política partidária, aos 54 anos continua sendo uma das vozes mais importantes do movimento negro. Concedeu esta entrevista quando estava na Federação Paulista de Futebol (FPF), onde era debatido e sorteado o Estadual de 2022. A entrevista faz parte da série Nossa Voz, do Grupo RBS, publicada ao longo da semana de 20 de novembro, Dia da Consciência Negra.
O que é o racismo em sua visão?
Para nós, que somos descendentes de escravos, o racismo remete à própria existência pessoal. Diferentemente de apenas estudiosos, nós sentimos na pele. Nosso olhar é diferente de quem luta conosco, e a quem agradecemos. O racismo está muito enraizado. Na infância, quando saímos de casa pelas primeiras vezes, começamos a perceber o racismo estrutural já no ambiente da escola. As crianças negras carregam esse trauma, inclusive pelos livros. Essas crianças sofrem quando saem de suas comunidades. Não há igualdade de oportunidades. No futebol, isso se reflete nas arquibancadas. Criou-se uma ideia de "espaços" para negros e negras. E os lugares mais sofisticados são para pessoas brancas. Está no nosso subconsciente. E isso é um ato discriminatório.
O combate ao racismo é mais eficaz se vier do poder público ou de iniciativas menores, dos cidadãos?
O poder público tem mais responsabilidade porque tem os instrumentos. Para combater o racismo, muitas vezes o único recurso é a autoridade policial: prisão, responder processo criminal. Mas de longo prazo, os melhores caminhos são as políticas públicas. A educação. Precisamos adequar o currículo escolar. O que temos de mais rico é a pluralidade cultural. Nossa riqueza é essa. O mundo tem inveja do Brasil. Precisamos de uma pedagogia mais inclusiva, melhorar isso. Mas isso é mais eficaz quando a luta deixa de ser dos negros contra quem pratica o racismo. Precisa ser uma luta antirracista. Vimos isso no caso George Floyd, a comoção mundial. Me emocionei de ver jovens brancos fazendo a linha de frente para que outros pudessem se manifestar. Tivemos um exemplo com a mãe da Marília Mendonça, que teve o marido confundido com um segurança. Então precisamos aproveitar, fazer o que vocês estão fazendo, trazer para a arena pessoas de destaque. O futebol precisa contribuir para a luta antirracista. É mais uma forma de reverberação. Precisamos entender que é uma luta de todos. Quem sabe no futuro eu não seja o único presidente negro. Que tenhamos mais mobilidade social da população negra não só dentro das quatro linhas.
De que forma?
Vemos muitos jogadores. Aqui na base da Ponte Preta são vários que sabem de tática, técnica, didática e até comunicação. O que contraria muita gente que acha que jogador é limitado. Precisa de oportunidade. Estamos avançando, mas ainda falta. Só esse debate já é importante.
Você sofreu episódios de racismo enquanto dirigente?
É inevitável, né? Faço a comparação do Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala, que é um retrato racial do Brasil. Explica quem tem de estar em cada lugar. Você chega em um local e as pessoas não estão acostumadas. Então perguntam quem é o presidente do clube, me apresento e aí me pedem desculpa. Temos de ter estrutura para isso. Aprendemos na chamada educação não formal, aprendi com minha mãe, minha vó, com as organizações do movimento negro. Temos um manual básico de sobrevivência, como se comportar quando encontra uma viatura policial. Não adianta ser herói de madrugada, porque será um herói morto.
A Ponte Preta também tem uma história de enfrentamento ao racismo.
A história da Macaca na Ponte Preta vem de um processo de racismo. Campinas foi a última cidade do Brasil a abolir a escravidão. Quando a Ponte Preta foi fundada, em agosto de 1900, já tinha negros. Por isso reivindicamos ser os pioneiros na inclusão racial. Pelo número de negros na torcida. Quando entrávamos no estádio, éramos chamados de macacos. Adotamos como símbolo, é motivo de orgulho essa inclusão.
Muitos brasileiros sofreram com atos racistas na Europa.
É algo interessante. Lá eles aprendem que a questão econômica não muda a cor da pele, e muitos atletas nossos se redescobrem como negros lá na Europa. Tive muitas experiências difíceis desde a infância. Inclusive no meu emprego, tinha cabelo black power e me diziam que era errado. Enfrentei problemas com a polícia mesmo quando era deputado, secretário municipal, passei por abordagens pesadas e que só sobrevivi por causa do manual. Se você não está pronto, entra para a estatística. A cada 23 minutos, morre um negro na periferia do Brasil.
Teve algum ato mais explícito?
O ato racista mais forte não é o declarado, quando xingam ou atiram uma banana. É quando, por exemplo, você estaciona o carro e vem alguém e diz que esse lugar é para autoridade. "Sou deputado", explico. E aí me pedem desculpa. Às vezes nem é intencional, mas a pessoa foi criada assim, sem estar acostumada a ver a senzala na casa grande. Só que isso é como levar um gol no início do jogo, sabe? Já sai abalado direto. Daqui uns anos vamos ter menos casos de racismo. Mas não sejamos ingênuos. Estamos vivendo uma onda de intolerância no mundo, vemos muitos atos de violência e não só contra gays, mas também contra mulheres, gays.
Como o futebol pode ajudar?
O maior problema do futebol é legitimar o racismo. Como se o futebol tivesse uma ética própria, na qual vale tudo para atingir o resultado. Então vale xingar, ter gritos homofóbicos, racistas, como se dentro das quatro linhas valesse tudo. Nosso desafio é construir uma próxima geração de atletas, dirigentes, e aí independe da cor da pele, que não perpetuem esses valores ruins.