A série Nossa Voz, sobre o mês da consciência negra, se encerra com um depoimento de Samory Uiki, que esteve nas Olimpíadas de Tóquio. Atleta do salto em distância da Sogipa, 24 anos, gaúcho de Porto Alegre, revela uma história que marcou sua infância e que nem a seus pais havia contado. Aos 10 anos, dois após iniciar a vida no atletismo graças a um projeto social, viveu a experiência traumática de uma abordagem policial numa parada de ônibus. O sentimento de culpa e o racismo se misturam neste enredo que Samory resgata na intenção de ser mais uma voz na luta antirracista.
Por Samory Uiki
Eu tinha 10 anos quando experienciei minha primeira abordagem policial. Há 14 anos, estava voltando sozinho do treino, como normalmente fazia. Era um trajeto longo, que precisava de dois ônibus. Desci do primeiro na Avenida Ipiranga e me posicionei para aguardar o próximo, que me levaria até minha casa. Carregava uma mochila e usava roupas de treino - camiseta da Sogipa, bermuda e chinelo (meu tênis de treinos estava protegido dentro da mochila).
Vi que havia uma viatura da Brigada Militar bem próxima da parada com dois policiais dentro. De repente, eles saíram do carro e começaram a caminhar na minha direção.
Naturalmente, vendo a aproximação deles, senti muito medo. Fiquei tenso porque havia outras pessoas na mesma parada e eu não havia feito nada de mal. A situação ficou pior quando um deles apontou a arma na minha direção e começou a gritar para eu não me mexer. Eles mandaram eu encostar as mãos na parede e abrir as pernas. Nesse momento, tomei um chute de coturno no maléolo (ossinho do lado do pé) para forçar ainda mais a abertura de pernas. A dor me atingiu instantaneamente, o choro subiu a garganta, mas me mantive firme. Fui ensinado que, nesse tipo de situação, é importante manter a postura.
Depois da revista, os policiais fizeram perguntas:
- O que você está fazendo na parada de ônibus?
- Tu quer assaltar esses trabalhadores, né?
- De onde tu tá vindo? Onde tu mora e o que tu tá fazendo na rua a essa hora?
Respondi a tudo com a maior educação possível. Em seguida, pediram minha identidade (graças a Dona Carla e ao Seu Dalmir, meus pais, eu sempre andava com identidade). Respondi que estava na carteira, dentro da mochila. Me virei com cuidado, evitando movimentos bruscos, e entreguei o documento ao policial que não estava com a arma na mão. Eles perguntaram:
- Tu está com drogas? Se a gente encontrar alguma coisa contigo, tu tá ralado, hein...
Abriram minha mochila e jogaram todos os meus pertences no chão. Essa foi a forma que me "revistaram". Não havia nada para encontrar. Então, logo que checaram minha identidade, fui liberado. Simples assim, sem um pedido de desculpas, sem devolver meus pertences ao devido lugar e com uma parada inteira me olhando como se eu fosse o culpado de um crime.
Essa conclusão equivocada me marcou para o resto da vida, pois passei a não usar chinelo na rua e a optar sempre por minhas melhores roupas para voltar para casa. O trauma foi tão grande que, até hoje, em certo nível, mantenho esses rituais.
SAMORY UIKI
Atleta olímpico
Senti muita vontade de chorar, mas aguentei firme. Não seria ali que eu ia desmoronar. As lágrimas só brotaram no banho, já na segurança do lar. Meus pais ainda não estavam em casa. Por vergonha ou medo, acabei nunca contando esse ocorrido para eles, que agora saberão por este texto.
Alguns dias depois, cheguei à conclusão de que era minha culpa o incidente. Estava malvestido, malcheiroso e de chinelo. Achei que fazia sentido os policiais agirem daquele jeito. E essa é uma das sutilezas do racismo que as pessoas não-negras talvez não entendam. Ele é uma estrutura tão engenhosa e violenta que faz as vítimas pensarem que são culpadas. Essa conclusão equivocada me marcou para o resto da vida, pois passei a não usar chinelo na rua e a optar sempre por minhas melhores roupas para voltar para casa. O trauma foi tão grande que, até hoje, em certo nível, mantenho esses rituais.
Com base nesse relato, que está muito longe de ser exclusivo, ilustro como o racismo afeta pessoas negras das mais variadas formas, não só pelos atos racistas em si, mas pela repercussão que esses atos geram. O racismo que você não vê nos afeta de formas e em níveis gigantes. E quero ilustrar alguns exemplos:
1) Invisibilidade: você que lê esse texto consegue me dizer os nomes de três pessoas negras de sucesso que não sejam esportistas ou cantores/atores no Brasil? Os nomes de três grandes empresários negros ou médicos ou presidentes de qualquer instituição?
Talvez um ou dois nomes até venham à tona, mas três é muito difícil. É bem interessante esse fenômeno, porque mais de 50% da população do Brasil é negra. Onde estão essas referências? Será que realmente é falta de esforço? Será que as conquistas ou o sucesso negro dos que não fazem parte do grupo "permitido" (esportes e arte) são invisibilizados, não creditados ou desvalorizados? Acaba-se criando uma ideia de que negros só podem ascender se fizerem parte desses grupos, o que restringe muito o leque de opções para melhora de vida e, consequentemente, mantém o status quo.
2) Saúde mental e comportamento: o racismo faz com que crianças negras desenvolvam uma consciência racial desde muito cedo, o que pode ser bom para algumas situações, como para a proteção e a segurança. Porém, também é uma consequência extremamente negativa e pesada. Desde muito cedo, o racismo foi pauta na minha casa, apresentado por meus pais de uma forma pragmática e didática, algo extremamente necessário e, ao mesmo tempo, triste. Acredito que todos os pais e mães negros deveriam trazer isso à tona para seus filhos, pois quanto melhor preparados eles estiverem para lidar com o racismo, menor é a chance de algum tipo de violência ocorrer.
Nós, negros, somos atingidos o ano inteiro por essa mazela e é papel de todos combater esse mal, independente de cor, credo ou religião. Enquanto isso, nós temos de continuar prosperando e superando as expectativas.
SAMORY UIKI
Sobre o combate ao racismo
Além disso, temos que lembrar dos estereótipos criados: o negro agressivo, o negro burro, o negro sujo etc. Eles induzem as pessoas não-negras a esperar uma série de atitudes. Com isso, acabamos nos restringindo, criando barreiras e camadas que agem não só para situações negativas, mas também em situações positivas, gerando uma apatia geral que influencia negativamente a saúde mental, promovendo o senso de isolamento e distância.
Dito isso, precisamos sempre lembrar que o racismo e a luta antirracista não acontecem só em novembro. Nós, negros, somos atingidos o ano inteiro por essa mazela e é papel de todos combater esse mal, independente de cor, credo ou religião. Enquanto isso, nós temos de continuar prosperando e superando as expectativas. Afinal, ser negro é isso. É passar a vida toda superando expectativas com a esperança de que, de alguma forma, o caminho seja aberto para que os outros que venham depois tenham a vida menos difícil e que sigam lutando para que, um dia, a sociedade se importe mais com o caráter e menos com a cor de uma pessoa.