Do anonimato em sua própria região, escassez de recursos e estrutura, dificuldades de patrocínio, o Flamengo de São Pedro passou a viver uma realidade diferente do que fora registrado pela reportagem há pouco mais de oito meses. A campanha naquele inédito Gauchão Feminino de 2021 rendeu o título de terceiro lugar e a oportunidade de ascender à terceira divisão do futebol feminino nacional. O primeiro jogo já é neste domingo (12), diante do Juventude, no estádio Homero Soltadelli, em Flores da Cunha, com o cobertura de GZH.
A primeira novidade encontrada no retorno ao munícipio do noroeste do Estado foi a estrutura disponibilizada para as atletas que fazem parte do time profissional e de base. Em mais uma das iniciativas do fundador Ildo Scapini, ele próprio disponibilizou um de seus imóveis no centro da cidade, que servia como renda através de aluguel, para que as jogadoras pudessem ter um refúgio, sem custos. Evitando assim que algumas jovens de outros estados precisassem percorrer diversos quilômetros para participar dos treinos e jogos.
Localizada na rua 15 de novembro, n° 216, no centro da cidade, a Casa da Atleta já abriga quatro moradoras: a goleira Laís, as laterais Luana e Fernanda, e a atacante Vanice. A entrada dá acesso à sala de estar. O primeiro quarto fica localizado logo à esquerda, e vem sendo utilizado somente por Laís. A arqueira foi a primeira a chegar no local e ajudou a mobiliá-lo com móveis próprios. Ela deixou a vida em Santa Catarina para viver o sonho do futebol.
Os outros dois quartos, que são próximos e com saídas para a sala de estar, possuem bicamas para poder comportar um número maior de pessoas. Neste segundo quarto, vivem as duas laterais. E fechando os dormitórios, o terceiro é onde a recém-chegada Vanice está passando as noites. Além da sala de estar com dois sofás, TV e uma mesa, em que sua estrutura inferior serve para guardar as bolas de futebol do time, a casa possui apenas um banheiro.
É bastante sofrido, mas muito gratificante. Fico feliz em abrir essa janela para os jovens. Com suas forças, elas podem fazer sucesso. Eu sempre digo que o sucesso depende do esforço de cada um.
ILDO SCAPINI
Fundador do Flamengo de São Pedro
Na cozinha, há o necessário para que as atletas possam fazer as refeições, e são elas mesmas as responsáveis por fazer o jantar e o almoço. Paralela à cozinha, há uma área de serviço com tanque e máquina de lavar. O local ainda possui nos fundos uma área que pode ser utilizada para colocar as roupas no varal.
A partir da iniciativa do fundador do projeto e com os valores de patrocínio, as atletas que vivem ali não arcam com os pagamentos de luz, água ou aluguel. A única despesa é com a alimentação. Quando as meninas têm dificuldades com os valores, elas também são auxiliadas por Ildo Scapini.
Novos patrocínios, mas atletas sem salários
A visibilidade e a repercussão após a conquista do terceiro lugar no estadual atraíram novos patrocínios. Atualmente, o maior valor financeiro vem do apoio da prefeitura local, que passou a destinar mensalmente o valor de R$8 mil. O município de Derrubadas, primeiro apoiador, segue garantindo a destinação de R$ 1,5 mil todos os meses. Outros comércios da região também auxiliam o projeto com valores simbólicos.
Apesar do incremento de receita, Ildo Scapini ainda segue com dificuldades de fechar o caixa todos os meses. Ele estima um prejuízo mensal de R$ 2 mil. Mesmo diante do cenário, o resultado do trabalho em oportunizar novas expectativas para as atletas é o que faz toda a diferença.
— É bastante sofrido, mas muito gratificante. Fico feliz em abrir essa janela para os jovens. Com suas forças, elas podem fazer sucesso. Eu sempre digo que o sucesso depende do esforço de cada um — declarou Ildo.
Mesmo com a melhoria em algumas áreas do clube, a situação de remuneração das atletas ainda segue no mesmo cenário. Nenhuma das jogadoras recebe salário para jogar. Os membros da comissão técnica são os únicos que recebem vencimentos. O montante de R$ 3,7 mil é igualmente dividido entre os cinco profissionais.
O papel das organizações
A atuação das entidades em apoiar os clubes no desenvolvimento da modalidade é o que tem permitido a participação nas competições. No caso do Gauchão Feminino, o custeio é feito pela Federação Gaúcha de Futebol. Nesta disputa do Brasileirão Feminino A-3, a CBF vai arcar com o pagamento do transporte, despesas de alimentação e hospedagem dos times visitantes, taxa de arbitragem e cobertura da operação das partidas para todos os times.
Criar caminhos e dar oportunidades para que as mulheres possam assumir protagonismos dentro e fora de campo também é um requisito para a evolução do futebol feminino. É o que indica Silvana Goellner, pesquisadora do futebol feminino e integrante do grupo de estudos Mulheres do Futebol, fazendo referência à presença feminina em cargos diretivos da CBF e em outras federações. Na última semana, Aline Pellegrino assumiu a gerência de competições tanto femininas quanto masculinas. No Rio Grande do Sul, Gabriela Luizelli é a diretora do departamento de futebol feminino da FGF.
— O olhar delas é de quem viveu a modalidade, de quem realmente sabe o que se passa. Esse olhar tem fomentado políticas interessantes dentro destas instituições, de uma maior abertura e investimento para o futebol feminino. O futebol de mulheres se estrutura de uma forma diferente por conta do apagamento histórico. Parece que as mulheres não jogam futebol desde sempre porque elas foram inviabilizadas ao longo da história — aponta a pesquisadora.