Debruçada sobre a mesa de apoio da poltrona 2C do voo entre o Rio de Janeiro e Porto Alegre, Pia Sundhage dedica parte das duas horas de viagem a um caderno com capa verde e amarela. No Brasil desde julho do ano passado, a treinadora da Seleção feminina é uma ávida estudiosa e aproveita qualquer oportunidade para aprender. No trajeto até a capital gaúcha, uma das missões da sueca era anotar, à mão, frases em português — idioma que se comprometeu a falar para facilitar a comunicação dentro e fora de campo.
A segunda tarefa antes de aterrissar faz parte de um antigo hábito de Pia: escrever sobre seu dia. Há anos, a treinadora cultiva o costume de abastecer uma espécie de diário. Perguntada sobre o objetivo dos registros, ela abre um sorriso e dá uma resposta que diz muito sobre sua essência.
— Para lembrar coisas corriqueiras que a cabeça não dá conta de guardar, mas também para recordar situações do passado e ser grata por estar vivendo o que vivo hoje — resumiu.
A singeleza nas palavras se reflete no jeito como Pia leva a vida e trata as pessoas ao seu redor. Não há quem não se encante pela treinadora. No Rio Grande do Sul para assistir a treinos da dupla Gre-Nal, na semana passada, antes de viajar para o Torneio da França, a sueca causou agitação no Estádio do Vale, em Novo Hamburgo. "Hello, coach", riam as gurias do Grêmio em uma roda organizada para dar boas-vindas à técnica.
— Vejo muita simplicidade e humildade. É uma pessoa muito inteligente, que já viveu muitas coisas dentro do futebol. A Seleção está com uma grande treinadora — avaliou Patrícia Gusmão, técnica do Grêmio, que conversou com Pia durante a atividade tricolor.
É assim, de forma leve, que Pia conduz, inclusive, os diálogos sobre trabalho, como destaca o comandante do Inter, Maurício Salgado:
— Você consegue identificar que ela tem um conhecimento muito vasto, mas não de uma forma prepotente ou professoral. É sempre uma conversa de igual para igual, em que ela transmite o conhecimento de forma muito tranquila e natural, o que acaba cativando.
Antes de sentar na arquibancada do estádio à tarde, Pia recebeu a reportagem do Grupo RBS no hotel onde se hospedava na Capital. Com as jornalistas, ela experimentou chimarrão — e, em português, afirmou que "não é tão amargo assim", como tinha sido advertida. O churrasco foi provado na noite anterior. E agradou a treinadora.
— É muito saboroso. Adorei tudo. Sou uma pessoa fácil. Estar no meio dessas pessoas, em um clima agradável, me deixa muito feliz. Aproveitei cada segundo aqui — sorriu Pia.
A seguir, confira os principais trechos da entrevista de Pia Sundhage, a primeira estrangeira a comandar a Seleção Brasileira feminina.
Qual a importância de visitar Porto Alegre?
Nós temos jogadoras no Inter e no Grêmio. Acho que um técnico precisa viajar. Em vez de ficar parada em algum lugar, prefiro sair, conhecer pessoas, criar relações e cultivar respeito. Gosto de me encontrar com os treinadores, ver como treinam suas equipes e ter uma ideia sobre qual tipo de futebol temos aqui no Brasil. Essa é uma realidade nova para mim, então acho muito importante viajar e conhecer o país de uma ponta à outra.
Quebrei as regras, mudei a atitude.
PIA SUNDHAGE
Técnica da Seleção feminina
O que pode comentar sobre a zagueira Bruna Benitez e a atacante Fabi Simões, as duas atletas do Inter que servem à Seleção?
Já as vi no Brasil. As duas são muito experientes, o que é bom. Acredito que elas têm muito o que ensinar para as mais jovens do grupo. Bruna, em disputas de bola pelo alto, é fenomenal. Ela é muito competitiva. Fabiana também. E ainda apoia muito bem. Ela pode jogar como lateral ou como extrema, dependendo do sistema tático.
Quais suas maiores dificuldades como técnica no Brasil?
Amo a técnica e as emoções envolvidas sendo treinadora. Se olharmos para o mundo inteiro, eu diria que temos de mudar a atitude. Porque, quando era pequena, ninguém concordava que eu podia jogar futebol. Só os meninos podiam jogar. Mas quebrei as regras, mudei a atitude. Há um tempo atrás, ali pelos anos 1970, muitas como eu foram eventualmente mudando a atitude, nos Jogos Olímpicos, nas Copas do Mundo. O próximo passo é conseguir apoio financeiro. Se você quer ser uma jogadora excelente, seu foco tem de estar inteiramente no futebol. Sempre tive outro trabalho durante minha carreira, e as jogadoras, hoje, são profissionais — mas nem todas. Se conseguirmos criar este suporte, podemos dar chances a meninas que são boas jogadoras para se concentrar no futebol. Precisamos de uma liga competitiva porque, se nossas atletas não enfrentarem grandes times, como saberemos o quê tirar de melhor delas? O próximo passo, então, é criar suporte e organização, porque até agora mudamos apenas a atitude.
Qual conselho daria para uma mulher que quer ser treinadora?
Sou um bom exemplo do apoio que ganhei. Porque quero permanecer no futebol, este é o meu trabalho, hoje. No passado, eu era uma jogadora, mas agora tenho a chance de treinar um dos melhores times do mundo. Acredito verdadeiramente que precisamos de técnicas, precisamos formá-las. É uma mistura muito importante. Agora, é difícil ser jogadora e virar técnica, pois há muitos cursos de treinador, seja aqui ou na Suécia. E isso é difícil, comparar a história com os homens ex-jogadores. Eles tiveram suporte maior. Por isso, vou apoiar qualquer mulher que queira ser treinadora, pois nós precisamos formar mais técnicas.
A Suécia tem quase 10 milhões de habitantes e praticamente 200 mil mulheres jogando futebol. No Brasil, que tem 200 milhões de habitantes, há apenas 15 mil pessoas praticando futebol feminino, de acordo com relatório divulgado pela Fifa. O que precisamos aprender com seu país?
Na Suécia, nós começamos mais cedo. Eu já jogava nos anos 1970. Nós ganhamos apoio, e isso também é sobre mudar a atitude, antes de tudo. No fim, se você é menino ou menina, não interessa. Se você é uma criança e quer jogar futebol, vá em frente. Encoraje isso! Este é o primeiro passo. O segundo, eu diria que é o fato de todos poderem jogar, se houver um campo. Não importa se você é o melhor ou o pior do time, apenas jogue. É muito importante e positivo que você tenha meninas jogando, então apoie elas, não importa se não são as melhores. Depois disso, você vai dar aporte para que as melhores se destaquem. Na Suécia, temos um sistema de "scout" para selecionar atletas. E as pessoas dizem por lá: "Uau, olhem quantas jogadoras boas no Brasil". Provavelmente isso seja verdade. Eu vou para a praia, vejo como uma menina pega na bola e pergunto: "Você joga futebol?" Ela me responde: "Não, estou apenas brincando." Ela não está "jogando" futebol. Você precisa encorajar elas. Olhe em volta. Se você é boa jogando futebol, pode, sim, ter uma boa vida. Este é o próximo passo. É um grande passo. Temos excelentes jogadoras aqui, que precisam focar só no futebol. Isso não é fácil. Tem muita gente à sua volta que precisa mudar de atitude.
No ano passado, pela primeira vez uma mulher conduziu a campanha campeã do Brasileirão feminino. Qual a importância do feito de Tatiele Silveira, treinadora da Ferroviária?
A coisa mais importante é que ela pode ser um grande modelo. Realmente espero que existam pessoas assistindo e pensando: "Ela é treinadora de uma boa equipe e é mulher. Se ela pode fazer isso, eu também posso". Vi muitos modelos assim na Suécia e nos Estados Unidos, como Abby Wambach. Ela, em uma entrevista, disse coisas muito boas sobre o futebol feminino. Aqui, temos a Mônica. Ela também é um grande modelo. Acho que os sonhos importam muito. Eu sonhava em ser jogadora profissional quando tinha 10 anos. Há muita energia nos sonhos, e isso é contagiante. Na última Copa do Mundo, a final teve duas mulheres como técnicas: EUA e Holanda. Para mim, isso foi ótimo. Mas também havia um terceiro, um homem, da Suécia, treinador. Ele importa também, porque nós queremos homens e mulheres no jogo. Isso é importantíssimo.
Na Copa de 2019, a Seleção teve cinco atletas que atuavam no Brasil convocadas. Agora, você chamou 10 para o Torneio da França. O Brasileirão está ficando mais forte? Quando veremos jogadoras da Europa, por exemplo, atuando aqui?
Eu ouço as pessoas, e elas estão empolgadas porque o Brasileiro está ficando mais forte pouco a pouco. Falando em sonhos, sonho que uma jogadora da Suécia, da França, da Alemanha e também da Inglaterra — porque essa liga é muito forte — venha jogar aqui. Acho que é possível, se continuarmos apoiando nosso campeonato. Uma técnica da Suécia veio para o Rio de Janeiro treinar. Isso é possível. Espero que isto aconteça logo. Jovens jogadoras vão para a Europa, para os EUA, e o contrário também pode ocorrer. Para isso, precisamos de um campeonato mais forte.
Como preparar a Seleção para jogar sem Marta, Formiga e Cristiane?
Antes de tudo, preciso dizer que sou muito grata por estar perto dessas jogadoras. É muito grandioso para mim. Em segundo lugar, depois da Olimpíada, talvez meu maior desafio seja achar novas jogadoras e formar um time coeso e cheio de energia para chegar à próxima Copa do Mundo com chances de ganhar. Vai ser muito difícil, mas muito divertido superar isso. Você precisa trabalhar o encaixe do time. Tenho viajado pelo Brasil para encontrar jogadoras e encorajar os técnicos a procurarem também. Eu li, na Copa de 2015, que Marta, Formiga e Cristiane jogariam seu último Mundial. E aqui estamos nós. Realmente acredito que a Olimpíada de 2020 pode ser uma das últimas competições delas, talvez a última.
O que esperar da Seleção em Tóquio?
Você pode esperar que vamos fazer nosso melhor. Tentaremos colocar em campo a melhor performance de cada uma. Espero que que a gente consiga usar nossas armas, o que significa: driblar, chutar e atacar. E uma coisa mais: nós vamos tentar ficar atrás da bola. Precisamos melhorar defensivamente. Espero que isso nos traga muitas vitórias.
Marta foi homenageada e virou samba-enredo da Inocentes de Belford Roxo, no Rio. Na Sapucaí, você a viu participando do desfile. Como foi?
Foi louco! Você consegue imaginar? No Carnaval, Marta estava à frente de sua mãe, duas mulheres que fazem diferença no mundo na minha opinião. E eu estava próxima disso tudo. Isso foi fantástico. É algo que nunca aconteceu antes, e fiquei muito orgulhosa por presenciar isso. Gosto de festas.
Já aprendeu a sambar?
Não, não mesmo. Sou do rock 'n' roll.
Desafio contra as donas da casa
Invicta à frente da Seleção Brasileira, Pia Sundhage encara um desafio complicado neste sábado: a partir das 17h (de Brasília), sua equipe enfrenta a seleção francesa, dona da casa e organizadora do Torneio da França, que conta também com Holanda e Canadá. Na estreia, quarta-feira, o Brasil ficou no empate em 0 a 0 com as holandesas, atuais vice-campeãs mundiais.
Este é o 10º jogo da treinadora sueca com a Seleção. Até aqui, ela tem seis vitórias e três empates. Pia tem trabalhado para formar o grupo que vai participar da Olimpíada de Tóquio, e por isso o time que entra em campo contra a França deve ter até sete mudanças em relação à estreia. O Brasil deve jogar com Bárbara/ Letícia Santos, Tayla, Daiane e Tamires; Formiga, Luana, Andressinha e Andressa Alves; Bia Zaneratto e Cristiane.
Depois do jogo deste sábado, a Seleção encerra sua participação no Torneio da França na terça-feira, contra o Canadá. Em abril, dois amistosos estão marcados, contra Costa Rica, dia 8, e EUA, dia 14, como últimos testes antes da convocação para os Jogos Olímpicos.