Um raio pode cair duas vezes no mesmo lugar? Na ginástica artística brasileira, tudo indica que sim. À base de saltos acrobáticos e piruetas arrojadas, um gaúcho começa a trilhar um caminho de sucesso na modalidade.
O talento incomum de João Lucas Prunes Vieira, 16 anos, já o levou à seleção juvenil. Neste domingo (30), o atleta da Sogipa briga por medalha no salto no Campeonato Mundial da categoria, que está sendo disputado em Györ, na Hungria. Na quinta-feira (27), o garoto avançou à final do aparelho com a quinta melhor nota.
Por coincidência, a história de João Vieira espelha-se em certos aspectos à trajetória de uma conterrânea consagrada, Daiane dos Santos, a primeira representante do país, no masculino e no feminino, a conquistar o ouro em Mundial. Tanto a ex-ginasta quanto João foram descobertos por acaso, enquanto brincavam na rua. A história de Daiane é conhecida de todos: avistada aos 11 anos por uma técnica na pracinha de uma escola do bairro Menino Deus, logo foi convidada a treinar no Grêmio Náutico União.
Já o jovem atleta foi garimpado aos nove anos em uma praça debaixo do viaduto que passa sobre a Avenida Benjamin Constant, no bairro São João. Ao aproveitar a presença de uma trupe circense que montara aparelhos para treinos de acrobacias no local, o menino começou a executar mortais para espanto do grupo de malabaristas e de motoristas que transitavam pelas imediações.
Não demorou para um integrante da companhia gravar em vídeo os movimentos do guri e divulgá-lo na internet. Ao ver as imagens, o ex-ginasta e conselheiro da Sogipa Nelson Saul, já falecido, não hesitou: rumou à praça para conhecer o prodígio e convidá-lo a ingressar na escolinha do clube.
A ginástica formou minha personalidade, me tornou uma pessoa melhor. Quero ser reconhecido como um grande ginasta, quero ser um exemplo para outros meninos.
JOÃO LUCAS PRUNES VIEIRA
Ginasta da Sogipa e da seleção
Em seu primeiro dia na Sogipa, João Vieira teve de passar pelo exigente crivo de Vardan Movsisyan, um ex-ginasta da extinta União Soviética radicado em Porto Alegre há quase 25 anos. Armênio naturalizado brasileiro, o técnico pediu para o aprendiz executar flic-flacs no tablado. O atleta diverte-se hoje com o diálogo travado no ginásio.
– Não sei o que é flic-flac – disse João.
– Faz mortais, quantos tu puderes fazer – orientou Vardan.
O menino, então, deu incontáveis mortais na área dos exercícios de solo.
– Fiquei tonto. Mas ele (Vardan) gostou – lembra, com orgulho.
De fato, o técnico aprovou o desempenho do pupilo, com um porém:
– Ele acertava os movimentos, mas fazia sem técnica alguma. Levamos um ano para limpar (as execuções) e colocá-lo no lugar.
A lapidação do atleta tornou-se até um desafio simples para João. Muito mais complicado foi superar os obstáculos que a vida lhe impôs. O maior deles, a desestruturação do lar. A mãe, Patrícia Prunes Vieira, era usuária de crack. Não raro, aparecia nos treinos do filho sob efeito de drogas e álcool. Também costumava sumir da modesta casa onde a família morava próximo à praça que revelou os dotes do ginasta. Diante desse cenário de desamparo, aos 11 anos o jovem atleta foi morar com um amigo da família.
Um lar, enfim
A vida do guri não melhorou. O mau desempenho escolar logo chamou a atenção de professores. Dois anos depois, um dirigente da Sogipa, Luiz Gustavo do Nascimento Zilles, entrou em cena e o levou para morar por um mês com sua família. Em 2016, João perdeu a mãe, vítima de insuficiência respiratória aos 42 anos. Com pai desconhecido, o garoto de 13 anos foi acolhido por uma tia. Mas não por muito tempo. Como ela morava longe da Sogipa, os deslocamentos diários para treinar viraram um fardo para João. Além disso, teve de conviver outra vez com a ameaça de ficar sem teto. Isso porque a tia avisou que não teria condições de sustentá-lo.
João tem um potencial incrível, ele é muito tranquilo. É um ginasta mais calmo do que eu fui.
DAIANE DOS SANTOS
Ex-ginasta
Foi então que uma prima em segundo grau surgiu na vida do ginasta. Ao tomar conhecimento da situação delicada do garoto, a advogada e professora Fernanda Nunes Barbosa o convidou a morar com ela. Hoje, Fernanda possui a tutela de João. Muito mais do que esse instrumento legal, João, enfim, ganhou um lar de verdade, a ponto de chamar de mãe a prima de 41 anos.
– Ele é um menino alegre, de ótima convivência. Tem grande capacidade de superação, não fica remoendo o passado. É aquela pessoa que prefere sempre olhar o copo meio cheio – destaca Fernanda, que desembarcou na quinta-feira em Györ para acompanhar de perto o desempenho de João.
Em meio a dramas e mazelas que nenhuma criança deveria enfrentar, João Prunes Vieira decolava no esporte. Poucos dias depois da morte da mãe, o atleta foi inscrito no Brasileiro infantil. Conquistou o título no individual-geral, que premia o ginasta mais completo.
– A ginástica é uma forma de aliviar minha cabeça – diz João.
Na mesma competição, também colecionou medalhas nas provas por especialidade. Seus aparelhos preferidos, por sinal, são o salto e o solo, os mesmos da preferência de Daiane e também os prediletos do ginasta que virou inspiração para João: Diego Hypolito.
– Quando era criança, gostava de acompanhar as competições de ginástica. Quando assistia às provas do Diego Hypolito, pensava: "Vou ser como ele".
Ainda faltam currículo e rodagem, é claro, para João se comparar ao bicampeão mundial do solo e prata na mesma prova nos Jogos do Rio 2016. Mas a determinação do gaúcho impressiona até mesmo o experiente ginasta paulista, que conviveu com o gaúcho em treinos da seleção.
– João é autêntico, gosto muito dele. Tem muito talento. Torço para que ele consiga os resultados que eu consegui, até mais – afirma Diego.
Aos 33 anos, Hypolito diverte-se ao recordar de um episódio que revela a maturidade de João Vieira:
– Eu ainda vinha de uma recuperação pós-cirúrgica na coluna e estava com dificuldade de fazer os exercícios. Então o João se aproximou e disse: "Se acalma, respira, você vai conseguir". Você vê, um garoto com a metade da minha idade veio me dar conselhos.
Confiança de sobra
Quem também surpreendeu-se com a personalidade do ginasta foi Daiane. Há três semanas, ela compareceu à Arena Carioca 3, no Rio, para acompanhar as disputas do Campeonato Brasileiro de Especialistas.
Estamos de olho nele. É um ginasta bastante arrojado, que não tem medo e gosta de competir .
LEONARDO FINCO
Gerente de seleções de ginástica artística da Confederação Brasileira de Ginástica (CBG)
Hoje comentarista do SporTV, ela teve a oportunidade de conversar com a promessa da Sogipa e assistir as suas apresentações na competição. No solo e no salto, competindo com adversários da categoria adulto, João Vieira avançou às finais com notas melhores do que Arthur Zanetti, ouro nas argolas na Olimpíada de Londres 2012. Nas finais das duas provas, o ginasta de 29 anos deu o troco, faturando dois ouros _ João ficou com o bronze em ambos os aparelhos.
– João tem um potencial incrível, é muito tranquilo. É um ginasta mais calmo do que eu fui – diz Daiane.
Outra característica parece sobrar no ginasta: confiança. Técnicos que acompanham a evolução do atleta não poupam elogios.
– Estamos de olho nele. É um ginasta bastante arrojado, que não tem medo e gosta de competir – afirma o gaúcho Leonardo Finco, gerente de seleções de ginástica artística da Confederação Brasileira de Ginástica (CBG). – Confiança é bom para o atleta, ajuda muito no desempenho.
– Ele é o tipo do ginasta que erra nos treinos e acerta nas competições – completa Vardan.
– Tenho muita confiança mesmo. Sempre ponho na cabeça que vou ganhar – afirma João. – Estou satisfeito por ter pego a final do salto no Mundial. Neste sábado (29), vou treinar como louco para não deixar essa medalha escapar das minhas mãos no domingo. O ouro é o meu objetivo e vou fazer de tudo para agarrá-lo.
Se depender de João, coragem, talento e confiança não faltarão para o raio cair outra vez no mesmo lugar na ginástica artística brasileira.
Espelho, espelho meu
Vencer e ser reconhecido na ginástica artística não é a única aspiração de João Lucas Prunes Vieira. O adolescente de 1m64cm e 56kg ambiciona contratos de modelo fotográfico. Sonha até mesmo em seguir a carreira artística.
– Gostaria de atuar em séries e novelas – revela.
Vaidoso, costuma exibir a boa forma em postagens no Instagram. Fotos posadas sem camisa dividem espaço em sua conta com registros de momentos especiais em competições e treinos.
Mais preocupado com o desempenho do pupilo nos aparelhos de ginástica do que com ensaios fotográficos, o técnico Vardan Movsisyan não perde a chance de tentar demovê-lo da ideia.
– Sempre falo para ele: tu és muito feio para ser modelo – diverte-se.