O ano era 2007. O São Paulo, de campanha brilhante no Brasileirão, fazia um treino tático comandado por Muricy Ramalho. Hernanes, revelação da campanha daquele ano, estava com dificuldades. Abusava dos erros de passe. O técnico lhe chamou a atenção, ao que ouviu uma resposta inusitada:
— É que hoje eu quis treinar só com a perna esquerda.
Além de dar indícios de como Hernanes transformou-se em um jogador capaz de usar qualquer uma das pernas, sem decréscimo de qualidade, em passes e finalizações, o episódio dá ideia da disciplina de trabalho do meio-campista. O comprometimento, aliado ao talento, impulsionou a carreira e permitiu momentos como o atual, em que retornou ao Morumbi e é apontado como principal responsável pela recuperação da equipe no Brasileirão.
Aos 32 anos, Hernanes é uma máquina de treinar. Não se contenta com as atividades designadas ao grupo de jogadores.
— No dia a dia, é disparado o cara que mais treina. Termina o trabalho e ele fica lá, treinando finalização por muito tempo. Os outros jogadores também vão percebendo isso como exemplo, porque é um cara que veio com moral, renomado — destaca José Eduardo Martins, repórter do portal Uol.
A vontade de se aprimorar é tanta que extrapola o centro de treinamentos. Hernanes tem um campo de futebol sete no pátio de casa. É um dos locais em que faz atividades complementares, tanto físicas quanto técnicas.
— Com a maratona de jogos, eu não tenho conseguido usar muito o campo. Vou para lá uma vez a cada 15 dias — lamenta-se o meia. Sua assessoria de imprensa alerta que o local é só um dos que o jogador usa para trabalhos complementares.
O Rogério Ceni sempre foi o nosso principal líder, mas o Hernanes já tinha jeito de ser uma liderança. Sempre foi um cara diferente na hora de falar.
MURICY RAMALHO
Ex-técnico do São Paulo
— Eu descobri que, se não tiver foco, não se consegue alcançar alguma coisa importante, fazer algo valioso na vida — resume Hernanes.
Das palavras, às atitudes, ao toque refinado nos chutes e assistências, percebe-se que o artilheiro do São Paulo no Brasileirão, com nove gols, é um jogador diferente. Era algo que se via já em sua primeira temporada de destaque no clube, em 2007. O comprometimento era o mesmo de hoje, e já havia indícios de sua capacidade de liderança.
— O Rogério Ceni sempre foi o nosso principal líder, mas o Hernanes já tinha jeito de ser uma liderança. Sempre foi um cara diferente na hora de falar — lembra Muricy.
_ Ele também procurava trabalhos diferentes para fazer, técnicos e físicos. No campo, usava as duas pernas. Fazia exercício para isso. Tinham uns trabalhos que eram coisa dele. Parte do treinamento que ele queria fazer — complementa o ex-treinador são-paulino no tricampeonato brasileiro, entre 2006 e 2008.
Hugo, ex-meia de São Paulo, Grêmio e Juventude, lembra até hoje de cenas curiosas das atividades pouco usuais do então jovem:
— Às vezes, antes ou depois dos treinamentos, ele ficava com a bola dentro do campo, dominando de olhos fechados. A gente perguntava o que ele tava fazendo e ele só respondia: "Tô treinando aqui".
A dedicação foi recompensada com gols, passes açucarados e campanhas vitoriosas que o levaram à Europa. Passou por Lazio, Inter e Juventus, antes de ir para a China defender o Hebei Fortune. Foram sete anos longe do Brasil. Quando retornou, em meio à temporada 2017, viu-se que as frases bem colocadas, a classe para jogar e a entrega ao trabalho estavam intactas.
Se o São Paulo hoje está afastado da zona de rebaixamento, a responsabilidade é 50% da torcida, 50% do Hernanes.
RAPHAEL RAMOS
O Estado de S. Paulo
Evidente que, com a idade, Hernanes não é o mesmo jogador. Ganhou destaque na nova fase ao ser posicionado mais próximo do gol. O volante dinâmico de antes tornou-se um meia agudo, que entra na área e faz mais gols do que o badalado centroavante Lucas Pratto. Fora de campo, o líder aflorou. Era tudo que o desesperado São Paulo precisava.
— Se o São Paulo hoje está afastado da zona de rebaixamento, a responsabilidade é 50% da torcida, 50% do Hernanes. A torcida abraçou o time. Dentro de campo, o Hernanes é fundamental. Já vejo ele como um dos principais candidatos ao título de melhor jogador do campeonato — arrisca Raphael Ramos, do Estado de S. Paulo.
— Na parte psicológica, ele é muito importante. O time tinha bons jogadores como Pratto, Cueva, Jucilei, mas não são referências. O Hernanes é identificado com a torcida. Preencheu um vácuo que ficou com a saída do Rogério — complementa.
A cada jogo, atuações brilhantes. A cada entrevista, declarações precisas, que não tentam mascarar eventuais maus desempenhos _ como após o jogo contra o Fluminense, quando disse que faltava "maturidade" ao time. A cada treino, esforço até a última gota de suor para se aperfeiçoar. Hernanes é o pacote completo, capaz de sentar em frente ao microfone e, ao ser questionado sobre a chance de o São Paulo revigorado brigar pela Libertadores, responder que é preciso "mirar o Sol porque, se errar, estará nas estrelas". O Profeta voltou mais sábio e com costas largas para carregar o clube que o projetou.
A TRANSFORMAÇÃO DO SÃO PAULO
SEM HERNANES
16 jogos
4 vitórias
4 empates
8 derrotas
33,33% de aproveitamento (superior apenas ao do lanterna Atlético-GO, de 28,1%)
COM HERNANES
17 jogos
8 vitórias
4 empates
5 derrotas
54,9% de aproveitamento (seria o suficiente para ficar em quarto lugar)
OS NÚMEROS DO PROFETA
9 gols marcados (artilheiro do time na competição)
49 finalizações (segundo que mais finaliza, atrás apenas de Pratto)
3 assistências
Participou de 42,85% dos gols do time desde que chegou