Na semana em que o Grêmio completa 120 anos de vida, GZH apresenta uma série de matérias especiais para comemorar a data. O material apresenta várias facetas da trajetória tricolor. Hoje, confira a história do Fussball, clube fundado junto ao Tricolor em 15 de setembro de 1903.
São chamados de idendipartário aqueles que nascem em um mesmo dia. Caso de Grêmio e Fussbsall, fundados em 15 de setembro de 1903. Naquele momento, evidenciou-se que é mais importante ter com o que jogar do que ter onde jogar. Um deles, 120 anos depois, está consolidado entre os grandes do futebol brasileiro, o outro desapareceu deixando poucos vestígios. Mesmo que efêmera, a presença do clube irmão gremista, fundado algumas horas antes, colaborou para que a modalidade se desenvolvesse em Porto Alegre.
As pessoas que formaram as duas agremiações estavam presentes no jogo-exibição realizado pelos dois quadros do Rio Grande em 7 de setembro daquele ano. Não está cristalino o que se sucedeu entre aquela apresentação do futebol aos moradores de Porto Alegre e o dia em que os dois clubes ganharam vida. Há suspeitas de divergências entre os dois grupos de entusiastas do esporte bretão. Em caso de conciliação, se teria o mundo ideal. O Fussball, fundado por ciclistas da Radfahrer Verein Blitz, tinha o seu próprio campo. O Grêmio tinha a bola, de propriedade de Candido da Costa, um dos seus fundadores.
— Acredito que tenha havido um conflito de identidades. O Grêmio congregou homens de mentalidade diferente da dos Fussball, que tinham alemães mais tradicionais. Teria tido um viés identitário — argumenta a professora Janice Mazo, coordenadora do Centro de Memória do Esporte da Esefid da UFRGS.
A possível desavença estaria estampada nos nomes dos dois clubes. O Fussball, futebol em alemão, fincou raízes profundas com suas origens germânicas. Além da nomenclatura, era formado por industriários da elite da capital gaúcha.
O Grêmio adotou o football, a versão inglesa para o futebol. A estrutura diretiva gremista tinha comerciários e comerciantes da Praça XV. Eram pessoas proeminentes na cidade, mas sem o mesmo status financeiro da outra agremiação. O status social se reflete no fato de um ter apenas a bola e outro ter a cancha de jogo, como se dizia naqueles tempos. Outro aspecto ressalta a diferença de perspectivas.
— A gente pode ver isso do cartaz do primeiro jogo entre os dois clubes. Metade escrito em alemão e metade em português. O Grêmio nunca teve seus documentos escritos em alemão — explica Carlos Eduardo Santos, coordenador do museu do Grêmio.
O primeiro troféu
O primeiro duelo era aguardado com grande expectativa. Em 15 de janeiro de 1904, o jornal A Federação anunciava a partida agendada para 6 de março. A publicação destacava que “realisar-se-á um attraente match de foot-ball entre as apreciadas associações esportivas Fussball Porto Alegre e Gremio Foot-Ball Riograndense (essa foi a grafia utilizada na publicação), tendo o desafio sido lançado por este e muito bem acceito por aquella” . A nota ainda confirma que a partida seria disputada no campo do Blitz, na Rua Voluntários da Pátria. Também explicava que seriam realizados dois confrontos, um entre os primeiros quadros e outro com os segundos. Por alguns anos, esta foi a vida esportiva dos dois pioneiros.
O Grêmio que colocou mãos no Mundial de Clubes, Libertadores e tantos outros troféus de relevo no futebol, viu sua galeria de mais de 3 mil peças começar com o modesto Wanderpreis. Numa tradução livre do alemão, seria um troféu móvel que ficaria de posse definitiva de quem vencesse a competição três vezes consecutivas. Naquele match inaugural, o jogo entre os segundos quadros valia a taça Vereinpreis.
À época, a incipiente cobertura futebolística estava alocada na sessão de Theatro e Diversões de A Federação. A publicação destacou que o prélio inaugural teve “todos os attrativos”. Na sequência, informou que “nas duas partidas saíram vencedores os amadores pertencentes ao Gremio Foot-ball Porto-Alegre”.
As 29 linhas apresentam a escalação dos dois scratches, mas não cita o nome do autor do gol da vitória gremista por 1 a 0. Em 1906, o Grêmio conseguiu a posse definitiva da taça. Depois, repetiu o feito em 1912. A segunda versão do troféu tinha um formato inusitado. “Um rico chifre marcerisado e com finissimos trabalhos de prata”, como descreveu a Federação.
— Com o revisionismo que vem sendo feito no futebol brasileiro, é de se considerar que o Wanderpreis possa ser dado como um título citadino (que é disputado a partir de 1910), pois eram as duas únicas equipes que existiam na cidade — explica o advogado Diego Sarmento Salton, uma das 11 pessoas que alimenta o Grêmiopedia, site referência sobre a história do clube.
A relação entre as duas equipes exemplifica a diferença entre adversários e rivais. Grêmio e Fussball foram adversários. O Inter é rival. Em várias das edições do confronto, os jogadores confraternizaram juntos após os prélios. O segundo encontro entre os times, ainda em 1904, valeu o Troféu Gutschow, batizado com o sobrenome de Ludwig Alexander, conhecido como Sr. Gutschow, diretor do Brasilianische Bank für Deutschland, o popular Banco Alemão. Após o jogo, o banqueiro promoveu um banquete para todos.
Eram tempos de pouca informação sobre o futebol, mas a corneta estava presente. Talvez de uma gafe do Fussball tenha surgido a primeira galhofa futebolística de Porto Alegre. Dono de um campo, o clube precisou encomendar uma bola. Por algum erro de comunicação e/ou conhecimento, a encomenda aberta continha uma bola de futebol americano ou rugby. A mancada fez com que os gremistas apelidassem os adversários de “ameixas”.
— O Inter surge como o antagonista do Grêmio, que era o clube que tinha vencido mais, tanto que não abriu mão de enfrentar o primeiro quadro do Grêmio — relata Santos.
O azul preto e branco do Grêmio e o verde e branco do Fussball estiveram juntos em algumas trincheiras. As primeiras duas décadas do esporte bretão em Porto Alegre foram confusas. Uma série de cria liga, briga, cria liga, briga se sucedeu. Em alguns casos, Grêmio e Fussball andaram de mãos dadas.
A situação mais emblemática ocorreu em 1913. Inter e Fusball mediam forças no Fortim da Baixada, a primeira casa gremista. Insatisfeitos com a atuação do referee, os colorados não pouparam palavras ao se dirigir ao árbitro do confronto. O dono do apito era um sócio do Grêmio — na época um associado de um clube não envolvido no jogo era escalado para apitar. A situação causou rebuliço. Ofendidos, Grêmio, Fusball e Fussball Mannschaft Frisch Auf se demitiram da Liga Porto-Alegrense de Foot-Ball e ergueram a Associação de Foot-Ball Porto Alegrense.
Quatro anos depois, novo rebuliço. A Federação Sportiva Rio Grandense implementou a Lei do Estágio. O regramento visava coibir a profissionalização. Para jogar a competição organizada pela liga, um estrangeiro deveria morar há pelo menos um ano em Porto Alegre. Com uruguaios no elenco, o Grêmio se sentiu prejudicado e se retirou. O Fussball também.
O declínio
Nos anos vindouros, a profissionalização se tornou inevitável e aqueles amadores citados na notícia de A Federação perderam espaço. O Fussball se manteve irredutível. Os homens do clube achavam ultrajante serem pagos para jogar.
Os problemas brotaram bem antes. Os primeiros entraves surgiram após a Primeira Guerra Mundial. Brasileiros e alemães estavam em lados opostos. Envolvidos com o Fussball eram hostilizados nas ruas. Houve em vários clubes de origem alemã a nacionalização dos nomes. O Novo Hamburgo foi rebatizado de Floriano, por exemplo. O Fussball passou a se chamar Porto Alegre. A dinâmica se repetiu na Segunda Guerra.
Naqueles tempos, as finanças não eram tão saudáveis como na época dos primeiros chutes. Em 1944, no último ano de vida, o estádio do clube, a Chácara das Camélias — onde hoje estão a Escola Estadual de Ensino Médio Infante Dom Henrique e um supermercado —, foi leiloado e arrematado pelo Nacional.
De maneira indireta, o Nacional também pode estar ligado ao fim do coirmão gremista, mas não apenas pela compra do estádio. A década de 1930 viu a popularização do futebol na cidade. Houve uma proliferação de novos clubes. A aquela visão de que o futebol tinha a elite da cidade se perdeu. O entusiasmo das pessoas do Fussball se perdeu.
O Fussball nunca atingiu as glórias de seu idendipartário. Foi campeão citadino em 1923, ano em que o Gauchão não foi disputado. Nenhuma das versões do Wanderpreis ficou de posse definitiva do clube. A escassez de títulos com a bola nos pés não se repetiu em outras áreas. No basquete, foi pentacampeão estadual.
No meio disso tudo, o clube definhou e se tornou quase invisível na história do futebol gaúcho.
— O Fussball ajudou a promover as competições porque sem adversário não tem competição. Então, teve um papel importante no desenvolvimento do futebol e ajudou a difundir o esporte — sintetiza Janice.
E, assim, foi-se o campo, mas a bola segue por aí até hoje mexendo com o coração de milhões de torcedores do Grêmio.