Do alto do último anel da Arena do Grêmio, os movimentos de Lucas Luan Siqueira de Lima eram regidos pelo som que vinha das arquibancadas e pela intensidade da narração que ecoava dentro da cabine de transmissão da Rádio Gaúcha. O jovem, que completará 21 anos na segunda (19), perdeu, em decorrência de um glaucoma, o pouco da visão com que nasceu — hoje, só lhe restam cerca de 15%. Quando o assunto é o Grêmio, a voz de Pedro Ernesto Denardin são os olhos de Lucas.
O ritual sempre é o mesmo. Aliás, quase sempre: é alterado apenas em ocasiões especiais. Desde 2016, Lucas liga a televisão no jogo, desativa o volume e sintoniza o rádio na Gaúcha. Isso só não aconteceu duas vezes. A primeira foi na final da Libertadores de 2017, quando o time de Renato Portaluppi bateu o Lanús na Argentina e ficou com o tricampeonato — o guri ficou responsável pelo churrasco da família, que optou por não sofrer com os lances que eram narrados primeiro no rádio e instantes depois apareciam na TV. A segunda foi na quarta-feira (14), quando os gremistas começaram a encaminhar uma vaga na final da Copa do Brasil, na vitória por 2 a 0 em cima do Athlético-PR.
A preparação para o grande dia começou em 30 de julho, quando Denardin o convidou para acompanhar, ao seu lado, a transmissão da jornada. Com ansiedade quase permanente, Lucas separou já naquela semana a roupa que iria vestir para conhecer a casa do seu time: a camiseta tricolor que comprou quando Cícero abriu o caminho para o tri da Libertadores. Os 8ºC da fria noite de quarta, porém, obrigaram o jovem a esconder o uniforme sob um casaco preto. Abraçado em Fernanda, ele exibia o distintivo bordado na jaqueta da namorada para mostrar o time que o levou até ali — como se o sorriso não o entregasse.
Foram cerca de quatro horas vivendo um ambiente até então inédito. Visitar a Arena era um devaneio distante. O preço dos ingressos inviabilizam a presença de Lucas e de sua família no estádio. A mãe, Tatiana, de 46 anos, não pode trabalhar em decorrência do auxílio que o filho recebe do governo por causa da deficiência. O pai, Jorge, 50 anos, está desempregado. O que aproximava o Grêmio da realidade do guri, até a última quarta, era a Rádio Gaúcha.
Na quarta, Lucas e Fernanda tiveram uma noite que será reavivada em suas lembranças diariamente — segundo o jovem, será impossível não recordar do que viveram a cada vez que o rádio for ligado na casa onde mora, em Gravataí, na Região Metropolitana. E essa noite começou bem antes de André e Jean Pyerre darem boa vantagem aos gremistas para o jogo da volta.

A TRANSMISSÃO
À medida em que a voz de Pedro Ernesto se intensificava, as mãos inquietas de Lucas se entrelaçavam com ansiedade, e ele se inclinava em direção ao campo, como se empurrasse o Grêmio em direção ao ataque.
— Estou me sentindo dentro do rádio — emocionou-se.
Quando André abriu o marcador, Lucas abriu um sorriso de quem já sabia que o gol estava por sair. A vibração da arquibancada e a aceleração do ritmo da narração, que ocorria bem ao seu lado, indicavam que um lance de perigo se desenhava no campo da Arena:
— Eu disse: Renato fez bem em insistir no André.
O excesso de faltas evidenciavam um Grêmio nervoso. E Lucas percebia isso. A tensão era visível em seu rosto _ principalmente na testa, que franzia com frequência. Suas expressões não esconderam a frustração no momento em que Everton levou o cartão amarelo que tirou o atacante do segundo confronto da semifinal, em 4 de setembro.
Tudo era novidade: o som que alternava tons graves e agudos no aquecimento vocal de Denardin causavam estranheza. Os estouros provocados pelos socos que torcedores desferiam no vidro da cabine, cobrando que suas opiniões fossem reproduzidas na transmissão, assustavam.

A aflição no semblante de Lucas deu lugar ao êxtase na falta cobrada com perfeição por Jean Pyerre. Ao lado de Pedro Ernesto, o guri abraçou a namorada, que retribuiu com carinho. A cena se repetiu no soar do apito final da partida.
— Nunca mais vou ligar o rádio sem lembrar deste dia — resumiu Lucas.
A ARENA
Até então, o único contato que Lucas havia tido com a Arena foi na sala de sua casa. Com os 15% de visão do olho esquerdo, ele consegue enxergar alguns vultos pela tela da televisão quando joga videogame — ele se orgulha por disputar, com o Grêmio, campeonatos contra times do mundo inteiro sem sair de casa. A intensidade dos refletores prejudicava, e alguns detalhes não podiam ser percebidos. Mas a arquibancada norte chamou a atenção do jovem.
— Por que ali tem um azul diferente? — questionou à reportagem, antes de ouvir que a cor de concreto predomina no setor sem cadeiras e que o colorido era proporcionado pelas faixas e bandeiras esticadas pela torcida.
Encantado, Lucas entendeu o que pairava na Arena cerca de uma hora antes de a bola rolar: clima de jogo.

O ÍDOLO
Depois de conceder entrevista coletiva à imprensa, Renato Portaluppi recebeu o jovem no corredor do vestiário e o presenteou com uma camiseta.
— Ídolo, tu é uma lenda — reagiu Lucas, abraçando fortemente o técnico do Grêmio.
O treinador ainda autografou o uniforme e desejou sorte ao fã, que promete não esquecer da noite de 14 de agosto de 2019:
— Sempre que eu ligar o rádio, vou pensar: eu já estive lá.