Domingo, 19 de janeiro de 1964. O Santos vencia o Grêmio, no Pacaembu, pelo placar de 4 a 3, resultado que o colocava na final da Taça Brasil de 1963 — o torneio se estendeu até o ano seguinte. Aos 41 minutos do segundo tempo, uma reclamação do goleiro Gylmar com o árbitro argentino Teodoro Nitti ocasionou a expulsão do arqueiro santista.
Quem passou a vestir a camisa 1 do Santos a partir daí foi Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, que já havia marcado três gols na partida e, pela segunda vez na vida, se arriscava no gol para ajudar a equipe alvinegra. Foram quatro os jogos que Pelé atuou como goleiro do Santos na carreira. Nenhum tão importante como a semifinal da Taça Brasil.
A curiosidade de vê-lo na função rendeu até foto na capa da Folha de S.Paulo do dia seguinte, 20 de janeiro.
"Gilmar foi expulso e o 'rei' foi para o gol garantir os que tinha feito. E não passou mais nenhum", diz a legenda da imagem.
Com alguns minutos por jogar, o Grêmio tentou se aproveitar da superioridade numérica e arriscou a gol, forçando Pelé a fazer pelo menos uma boa defesa, como sugerem, de forma quase unânime, os jornais da época. Com isso, contribuiu para a classificação à decisão, contra o Bahia, na qual o clube paulista conquistaria seu quarto título nacional.
Um momento curioso e histórico na carreira daquele que ainda é considerado por muitos o maior jogador da história do futebol. O paradeiro da camisa 1 de Gylmar vestida por Pelé naquele 19 de janeiro, 55 anos depois, é um mistério.
O Memorial do Santos guarda uma camisa do goleiro santista, que defendeu o time de 1962 a 1969. Porém, os historiadores não sabem precisar se o item exposto na galeria de camisas históricas pertence àquele jogo diante do Grêmio.
Rogério Zilli, um dos responsáveis pelo Memorial, trabalhou diretamente com o acervo de Edson Arantes por mais de uma década. Entre as cerca de 2,5 mil peças que o Rei possui em sua coleção particular, Rogério diz que não há nenhuma camisa 1 do Santos.
O filho de Gylmar, Marcelo Neves, guarda algumas peças de jogo da carreira do pai. Ele diz ter uma camisa preta, número 1, que pertenceu ao goleiro, mas com as duas estrelas douradas, que fazem referência ao bicampeonato mundial santista em 1962 e 1963, além de uma réplica fabricada posteriormente.
O Santos só passou a utilizar oficialmente as estrelas a partir de 1968, quando o uniforme de Gylmar já tinha a chamada "gola careca". Na semifinal da Taça Brasil de 1964, Pelé veste uma camisa sem as estrelas e com gola polo. Igual à que está exposta no Memorial do Santos, cuja data de utilização ainda não pôde ser precisada pelos pesquisadores do clube.
"Embora eu não seja muito alto (1m73cm), sempre fui um bom goleiro por causa da impulsão. Tanto no Santos como na seleção, sempre fui o goleiro reserva. Joguei quatro vezes no gol para o clube e apenas uma vez, em amistoso, pelo Brasil. Mas frequentemente treinava com os goleiros das duas equipes", diz o Rei no livro "Pelé — A autobiografia", publicado em 2006.
Três gols do Rei
Após ter vencido a partida de ida em Porto Alegre por 3 a 1, bastava ao Santos um empate para se classificar à decisão do torneio. Mas o Grêmio ameaçou tirar do clube paulista a vaga na final.
No Pacaembu, Pelé sofreu falta na entrada área que Pepe cobrou, com muita força, para abrir o placar, ainda aos 6 minutos de jogo. Cinco minutos depois, porém, o gremista Paulo Lumumba já havia marcado duas vezes para colocar o Grêmio na frente.
Marino, aos 15 min, fez 3 a 1, mas aí apareceu Pelé, que com três gols (aos 30 do primeiro, e aos 13 e 38 da etapa final) decretou a vitória santista, ajudando o time com pelo menos uma defesa de maior dificuldade. Os gols podem ser vistos em um vídeo de arquivo da TV Tupi disponível na Cinemateca Brasileira.
A Gazeta Esportiva foi, de certa forma, premonitória nas semanas que antecederam o jogo com o Grêmio. Na edição de 11 de janeiro, uma das manchetes de capa dizia: "Pelé: craque com os pés e com as mãos". Mas o texto fazia referência a um exercício de basquete praticado pelos atletas santistas no treino, no qual Edson Arantes se destacou.
Na edição do dia seguinte ao jogo, de 20 de janeiro, a Gazeta escreveu que Pelé chegou a defender duas bolas, "uma delas com certo perigo. Só faltava essa para uma tarde de consagração do grande jogador".
Ainda no jornal do dia 20, a publicação classificava a atuação do árbitro argentino Teodoro Nitti como "ótima", em seção que era de responsabilidade do jornalista Orlando Duarte, o "Juiz do juiz".
Gylmar tentava se defender da expulsão:
— Não mereci, pois não ofendi o apitador. Nem mesmo reclamei. Apenas disse que o bandeirinha havia dado a bola para o Santos, admitindo que ele não houvesse percebido. Ele, então, me mandou para fora.
No dia 21, a "Gazeta" publicou uma entrevista com o árbitro Nitti, que justificou o cartão vermelho dado ao camisa 1 santista. "Gilmar me ofendeu, tive que expulsá-lo".
Teodoro Nitti, que, curiosamente, era árbitro da Federação Gaúcha de Futebol (então chamada de Federação Riograndense), levou a bola do jogo como recordação.
O Estado de S. Paulo, que não publicava edições às segundas-feiras, abordou o jogo entre Santos x Grêmio na edição de 21 de janeiro. Com uma foto de Pelé agarrando uma bola, o jornal trouxe a legenda "Pelé arqueiro: Depois da expulsão de Gilmar, Pelé improvisou-se em arqueiro. Nessa posição Pelé demonstrou virtudes técnicas ainda não conhecidas e teve oportunidades de praticar três defesas, uma das quais difícil".