Quando falamos sobre a alma de um clube, não são os títulos o que mais importa. O amor pelos símbolos, o pertencimento, a maneira como a paixão se entranha na nossa identidade têm lá suas razões. É evidente que as grandes conquistas entram nessa lista. Mas, ao falarmos de alma, precisamos atravessar a fronteira rude da competição. Precisamos falar de memória afetiva!
E, no caso do Grêmio, jamais poderemos deixar de lembrar o cirurgião torácico (vejam só, ele cuidava do peito das pessoas...) Hélio Dourado, nosso eterno patrono.
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Não por acaso, o homem de quem falo aqui, o homem que nos deixou nesta terça-feira, era puro afeto. Jamais me esquecerei da cena: quando fui ao seu apartamento na Dona Laura entrevistá-lo para um dos meus livros, eu já caminhava na rua pra pegar o meu carro e eis que ouço gritos vindos de cima.
Ao levantar os olhos, vejo doutor Hélio, de roupão, gritando "Léo, Léo, Léo", e abanando com seus característicos gestos largos. Não menos característicos eram seus "erres" arrastados. Quando o líder da Coligay, Volmar Santos, o procurou para dizer que havia uma nova torcida, algo totalmente revolucionário e vanguardista, nas arquibancadas do Olímpico, doutor Hélio o atendeu com toda a gentileza e respondeu:
_ Porrr que não?! São Grrremistas, isso é o que me imporrrta!
É o que ele repetia ainda hoje, com aqueles olhinhos vívidos, cercados das rugas desenhadas pela vida intensa.Pergunte ainda hoje a Volmar o que ele diz sobre Doutor Hélio.
_ Ídolo! _ ele falará em tom alto, sempre.
E é importante que se contextualize o momento e o contexto em que isso ocorreu: foi a exatamente 40 anos, 1977, ano em que o Brasil vivia sob a névoa de um regime militar em que até Departamento de Costumes a Polícia Civil tinha, para ficar de olho nessas pessoas "perigosas".
Mas, ao falarmos de Olímpico, precisamos lembrar que foi Doutor Hélio quem, naquele mesmo 1977, completou a cobertura superior do estádio, fazendo dele aquele casarão tão saudoso, substituído na nossa alma pela espetacular Arena, o estádio que Doutor Hélio demorou tanto e por motivos tão óbvios para aceitar.
Mas, Doutor Hélio, não se preocupe: o Olímpico mora nos nossos corações e transferiu sua alma para o novo lar que nos abriga. Sua obra é eterna, como eterno é o mítico Fortim da Baixada, o primeiro estádio tricolor. A propósito, a turma da Coligay se somava aos demais torcedores e ajudava o clube a arrecadar materiais de construção com festas interior afora. Mas esse é outro assunto. Mantenhamos o foco, Léo!
Ao falar de Olímpico Monumental, lembro aquele time de 1977. Outro dia, eu fui a um sarau da "Tribuna 77", em Novo Hamburgo. Éramos eu, o Iúra e o Loivo os convidados. Chegando ao local, olhei para o Iúra e disse:
_ Tchê, tu vais dizer que sou louco.
_ Por quê?
_ Porque vou te recitar algo agora, de cor, como se fosse um poema de Drummond ou Quintana.
E, sem consultar qualquer papelzinho ou olhar no Google, com os olhos postos nos olhos do Iúra "Passarinho", recitei, bem rápido:
_ Walter Luis Corbo; Pedro Eurico de Faria, Atilio Genaro Ancheta, Oberdan Vilain e Abelardo Madalena (o Ladinho); Vitor Hugo Barros, José Tadeu Ricci e Julio Titow (o próprio Iúra, que depois até me deu carona na volta até Porto Alegre); José Tarciso de Souza, Carlos André Avelino de Lima (o Catimba) e Eder Aleixo de Assis.
O Iúra ficou paralisado, me olhando. Virou-se pro Loivo e disse:
_ Loco, tu viu isso?! Ele sabe o time e o nome completo de todos daquele time!
Ah, aquele time... aquele time foi montado pelo Doutor Hélio. É como uma família até hoje. Qual foi seu grande título? Merecia algo maior, é certo. Mas o regional daquele ano tinha uma peculiaridade. O Inter tinha, possivelmente, seu melhor time de todos os tempos, um time que assombrou a segunda metade dos anos 1970.
Mas em 1977, sob o comando de Telê Santana, interrompeu e recuperou a hegemonia regional, com uma conquista catártica.
Ah, claro, eu disse lá em cima que os títulos também são importantes quando falamos na alma de um clube. Sim, também são!
Doutor Hélio começou ali em 1977 a dobrar uma esquina na História do Grêmio. Quatro anos depois, com ele ainda na presidência, veio nosso primeiro campeonato brasileiro. No ano seguinte, fomos vice.
Em 1983, já sob o comando de Fábio Koff (lançado por Doutor Hélio...), vieram os inimagináveis títulos continental e mundial.Percebam: uma palavra levou à outra neste texto.
E é bem assim: se formos falar de Hélio Dourado, nosso eterno patrono, não vou parar de escrever.Então, só para fechar: há coisa de meio ano, o Eduardo Dourado, neto do Doutor Hélio, me mandou a foto que está ali em cima. Era verão. Na casa da praia, Doutor Hélio pediu que Eduardo enviasse uma foto para mim, com ele segurando o meu livro Somos azuis, pretos e brancos.
O Eduardo sabe o quanto me emocionei. Pois me emociono agora novamente, Eduardo. Me vem à memória o Doutor Hélio roubando a cena na sessão de autógrafos de Coligay - Tricolor e de todas as cores. Ele pediu silêncio às 200 pessoas que estavam na Livraria Saraiva e começou:
_ Até a pé nós iremos...Todos cantaram juntos, até os colorados que ali estavam. Porque é disso que se trata: de afeto. De paz. De reconhecimento.Continuaremos sempre, todos nós, cantando com o senhor, Doutor Hélio! Vá com Deus...
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