O mesmo campeonato que disputarão as atletas olímpicas Lorena, Raquel Fernandes e Bruna Benites tem Gabi Becker e Kellen Moraes. A primeira divide o tempo entre dar aulas para goleiras e estudar Educação Física na UFRGS. A segunda é técnica de enfermagem e passa os dias em uma clínica médica. Ambas só podem se dedicar ao futebol quando as demais atividades permitem. Essa é a realidade do Gauchão Feminino. O principal campeonato do Estado, que deveria ser profissional, tem 78% das atletas com contrato amador. Nenhuma competição é tão desparelha no calendário brasileiro.
O Futebol Com Vida, o Juventude Dr. Salomé Goulart, o Elite e o Brasil de Farroupilha não assinam carteira com suas jogadoras. No máximo, algumas recebem ajuda de custo para se locomover a jogos e treinos. O Juventude tem 11% de profissionais, o que precisará ser revisto em 2024, quando disputará a Série A-1 do Brasileirão.
O caso mais grave foi o do Vidal Pro, que passou por um desentendimento entre atletas e direção, não compareceu na última rodada, levou W.O., anunciou o fim do departamento feminino e desistiu da categoria sub-17, na quinta-feira (3), uma semana antes do início do Estdual da categoria.
Os times de Gabi Becker e Kellen, Futebol Com Vida e Elite, respectivamente, classificaram-se para a segunda fase, que terá a presença da dupla Gre-Nal. Além deles, avançaram também Brasil de Farroupilha e Juventude.
O maior sonho da minha vida é que pudéssemos treinar.
KELLEN MORAES
Atacante do Elite
Isso signifca que Gabi Becker, cujo último encontro com suas companheiras foi no domingo, no jogo contra o Flamengo, enfrentará Bruna Benites e Letícia Monteiro sem qualquer tipo de preparação extra. A equipe não fez nem sequer um treino. Situação idêntica à de Kellen, que receberá o time de Lorena e Raquel Fernandes. Assim, será surpresa se não ocorrerem mais duas goleadas.
É isso o que torna o Gauchão o campeonato mais desnivelado do país, outra realidade do futebol regional feminino. A Copa do Brasil, uma vez chamada de competição mais democrática, não tem jogadores que não sejam profissionais, assim como os Estaduais masculinos.
A competição é profissional, mas nós não
KELLEN
atacante do Elite sobre o Gauchão Feminino
— Sabemos que jogar contra a dupla Gre-Nal é extremamente difícil. Deixamos bem claro que elas são profissionais e nós não. Muitas vezes, não temos nem 11 meninas, precisamos completar com as jogadoras do sub-17, colocamos a goleira reserva na linha. A competição é profissional, mas nós não — aponta Kellen.
Gabi Becker, que foi goleira das Gurias Coloradas, tem ainda mais clara essa diferença:
— No Inter, tínhamos uma rotina muito rigorosa de treinos, com os desgastes físico e emocional da função. Mas, ao mesmo tempo, percebo que não treinar todos os dias dificulta muito mais o processo. Tentamos alinhar os horários para treinar, quando possível. O incentivo financeiro ajudaria a ter menos preocupações diárias, a não ter que se preocupar em trabalhar ou estudar. Isso faria diferença.
O incentivo financeiro ajudaria a ter menos preocupações diárias, a não ter que se preocupar em trabalhar ou estudar
GABI BECKER
goleira do Futebol com Vida sobre o Gauchão Feminino
Quem está do outro lado também não gosta dessa situação. É desagradável entrar em campo sabendo que ocorrerá uma goleada. Em todos os seis anos de disputa do Gauchão Feminino, o Inter só foi derrotado três vezes, todas pelo Grêmio. No mesmo período, o Grêmio perdeu cinco partidas, quatro para o Inter e uma para o Juventude. No ano passado, o Inter fez 31 gols e levou cinco das equipes do Interior; o Grêmio marcou 33 e levou três. Nesse cálculo, estão seis partidas, quatro da fase inicial e duas semifinais, ida e volta.
As jogadoras da dupla Gre-Nal tentam manter uma certa neutralidade. Até para evitar polêmicas, o discurso é político quando se trata de analisar as adversárias amadoras. Letícia Monteiro avalia:
— Sempre quando jogam com a gente, é um jogo diferente, né? Porque elas não são profissionais, então querem mostrar serviço. Tenho certeza que elas têm um sonho de chegar aqui, de vestir a camisa do Inter. E acho que elas sempre vêm com muita garra, com muita vontade.
Mas só garra, vontade e desejo de chegar à dupla Gre-Nal não é suficiente. A diferença é gritante demais para que alguma delas chame a atenção. A desigualdade do campeonato fica resumida em uma frase de Kellen. O sonho dela nem é chegar a um time grande. É bem mais modesto:
— O maior sonho da minha vida é que pudéssemos treinar.
O que diz a FGF?
A reportagem procurou o presidente da FGF, Luciano Hocsmann, para entender o que a entidade pode fazer para minimizar essas diferenças. O primeiro ponto foi o alto índice de atletas amadoras no Estadual.
— O número de atletas amadoras, sem contrato profissional, decorre de um processo de formação que o futebol feminino vem passando aqui no Rio Grande do Sul. Até 2018, as competições não eram organizadas pela Federação, elas eram feitas por uma associação do futebol feminino com a chancela da federação. Acho que a partir do momento que houver também investimentos não só das federações, mas da iniciativa privada junto aos clubes, eles vão começar a crescer e tentar diminuir a diferença.
Luciano Hocsmann destacou que o Gauchão Feminino custa R$ 1 milhão à FGF. Além disso, também afirmou que os custos de arbitragem e transmissão são custeados pela entidade.