Este texto faz parte da cobertura da Copa do Mundo. A seção 'A Copa da minha vida' é publicada diariamente no caderno digital sobre o Mundial do Catar.
Tarde de 11 de junho de 2010, cerimônia de abertura da Copa do Mundo da África em Joanesburgo, no espetacular estádio Soccer City, em formato de cerâmica africana. Soam os acordes do lindíssimo hino sul-africano, cantado inicialmente em xhosa, a primeira das cinco línguas que o compõem.
— Nkosi Sikelel' iAfrika...
De pé na arquibancada, viro-me para trás para filmar os torcedores e topo com uma moça loira, olhos azuis, abraçada a seu filho de uns 10 anos, chorando copiosamente. A seu lado, famílias de negros, de descendentes de indianos, outros brancos, vertem lágrimas. A plateia, alguns estrangeiros inclusive, se debulha. A África, tão sofrida, tão sacrificada e desigual, chegava lá. O hino se impõe sobre as onipresentes vuvuzelas como a trilha sonora do início de uma era em que o continente mostrou ser capaz de organizar uma Copa do Mundo na qual a perfeição da Alemanha cederia vez à alegria de uma nação tão diversa quanto unida em torno de um objetivo comum e que agora se apresentava ao resto do planeta.
Na RBS, sabíamos que essa seria uma Copa muito diferente, "um evento geopolítico antes de ser um evento de futebol", como definia o então diretor de redação de Zero Hora, Ricardo Stefanelli. Tocou a mim, como diretor de produto do grupo, comandar a enorme cobertura que se avizinhava com seus muitos desafios adicionais. Três deles: superar as dificuldades logísticas, do transporte à hospedagem; aproveitar para assimilar todos os aspectos do Mundial, mirando a Copa do Brasil dali a quatro anos, e capturar o impacto social, econômico e emocional do evento para a África e o Hemisfério Sul.
O primeiro desafio foi superado graças a dois admiráveis coordenadores. Cezar Freitas, na supervisão editorial, e Caio Klein, nas operações, garantiram uma Copa irretocável para os 22 profissionais da RBS na África e outros 300 na retaguarda, bem como para os milhões de leitores, ouvintes, telespectadores e usuários que nos acompanharam no Brasil. Para se antecipar à Copa no Brasil, a RBS também enviou um pelotão de executivos encarregados de conhecer e anotar todos os detalhes de um Mundial, do marketing à relação com a Fifa. Por fim, e não menos relevante, tomamos uma decisão ousada: convocamos para o time um profissional que passaria ao largo do futebol, o multitalentoso Manoel Soares, hoje uma estrela da Globo. Em 2010, na RBS TV, Manoel Soares já era o que o Brasil conhece hoje: uma usina de energia e criatividade.
Quando chegou a Joanesburgo, Manoel foi alojado em um dos hotéis credenciados pela Fifa, um dos três pontos da metrópole em que se dividira a equipe da RBS, mas não gostou do que encontrou. Aquilo ali podia ser muito confortável, mas não era a África que ele procurava. Em questão de horas, o inquieto Manoel já havia se tornado ídolo de nossos motoristas e se mudado para o coração do Soweto, o gigantesco bairro negro na periferia de Joanesburgo que fora o endereço de Nelson Mandela e de tantas outras lideranças contra o apartheid. Ao longo de um mês, Manoel produziu reportagens memoráveis sobre a África e também algumas apreensões, como quando decidiu comemorar seu aniversário de 30 anos saltando de bungee jump de uma das torres de uma usina desativada que se tornaram símbolo de Soweto.
Os veteranos, como Pedro Ernesto, Ruy Carlos Ostermann, David Coimbra, Maurício Saraiva e Zé Alberto, brilharam como sempre na hora decisiva, mas a Copa da África também consolidou outros talentos em ascensão além de Manoel Soares. Gabardo, Lucianinho e Potter, entre outros, voltaram do Mundial condecorados pela estreia em alto estilo. O que não deu certo foi a Seleção, miseravelmente abatida pela Holanda em Port Elisabeth, nas quartas de final. Só tive decepção maior no Mineirão, em 2014, quando testemunhei a poucos metros da goleira do Brasil a procissão de gols alemães, mas esse dia é melhor esquecer.
A derrota por 2 a 1 para a Holanda foi o fim da jornada do Brasil na África e de quase toda a equipe da RBS. Para levantar a moral, alugamos um ônibus e fomos passar um dia de folga em Walvis Bay, a meca do surfe sul-africano, além de nos permitirmos uma turistada num safári em um parque de elefantes.
Saímos da África, mas ela não saiu de nós. Sei que Manoel já regressou algumas vezes, e eu mesmo, tão positivamente encantado, retornei de férias com a família dois anos depois, para reencontrar amigos, rever sorrisos e desfrutar, sem obrigações, de um dos mais apaixonantes países do planeta.
Ah, e o primeiro verso do hino sul-africano, aquele que começa em língua xhosa, quer dizer "Deus abençoe a África". Que assim seja.