Este texto faz parte da cobertura da Copa do Mundo. A seção 'A Copa da minha vida' é publicada diariamente no caderno digital sobre o Mundial do Catar.
Eu tinha 11 anos e o futebol já era importante para mim, por conta dos muitos jogos no Estádio Olímpico, levado pelo meu pai. Como gremista, havia um motivo adicional para torcer pela Seleção em 1970: Everaldo, nosso lateral esquerdo — que meu pai chamava de "Enciclopédia do Futebol" por conta de seu grande repertório técnico — foi para o México como reserva, mas acabou sendo titular.
Lembro vagamente de ouvir pelo rádio a Copa de 1966, que teve a participação (bem mais discreta) de Alcindo, o Bugre, outro jogador gremista extraordinário. Em 1970, já havia transmissão dos jogos pela TV. Nosso aparelho, preto-e-branco, da marca Philips, ficava na sala, sempre lotada durante os jogos. Além da família, às vezes apareciam alguns amigos do meu irmão Tonho na faculdade de Medicina para torcer conosco.
No primeiro jogo, contra a Tchecoslováquia, saímos perdendo por 1 a 0, gol de Petras, mas Rivelino empatou poucos minutos depois, cobrando falta com um chute violento e rasteiro, bem no canto do goleiro Viktor. Depois vieram mais três gols brasileiros. O segundo jogo foi contra a Inglaterra, campeã em 1966, que tinha o goleiro Gordon Banks (o melhor do mundo), os extraordinários Bobbys (Moore e Charlton) e o centroavante Hurst (com um cabelo que lembrava os Beatles). O treinador era "Sir" Alf Ramsey. Um adversário poderosíssimo. Partida nervosa, em que Banks fez uma das mais extraordinárias defesas da história do futebol, em cabeçada de Pelé.
Muitos anos mais tarde (47, para ser exato), essa defesa foi comparada com a de Marcelo Grohe no jogo do Grêmio no Equador contra o Barcelona de Guayaquil. Não importa qual foi a defesa mais bonita, e sim que, outra vez, a Seleção de 1970 e o meu Grêmio estão próximos em minha memória.
No dia do jogo contra a Inglaterra, a sala estava particularmente lotada. A imagem não era das melhores. Apesar da antena externa, havia alguns fantasmas e chuviscos. A tensão era crescente, e nervosas gotas de suor surgiam em nossas testas. Banks parecia intransponível. Então Tostão pegou a bola ao lado da área inglesa e deu um drible no seu marcador que, afirmo categoricamente, nunca atacante algum conseguirá reproduzir e passou para Pelé, no centro da área. O Império Britânico inteiro — seus zagueiros, seus soldados, seus oficiais, seus tanques, seus navios, seus aviões, seus espiões e toda a família real, com Elizabeth II à frente — correram na direção de Pelé. O Rei, então, com a malevolência que só um gênio pode ter, rolou a bola para Jairzinho, livre, que estufou as redes de Banks. Gol!!!
Um dos amigos do meu irmão Tonho, o "Portugal", estava sentado no chão, roendo as unhas. Quando aconteceu o gol, ele deu um pulo com os braços para cima, e sua mão atingiu o lustre da sala, derrubando um dos pingentes. Naquela confusão toda, com gente chorando de emoção, mal percebemos que ele cortara um dedo, que estava sangrando no tapete da sala. Um bandeide rapidamente providenciado pela minha mãe estancou o corte, e todos assistiram ao jogo até o final. A pequena mancha vermelha no tapete ali permaneceu por décadas, até que a casa foi vendida e o velho tapete seguiu para destino ignorado.
Parafraseando Winston Churchill (mais um "Sir" nessa história), o Brasil ganhou aquele jogo porque nada tinha a oferecer senão sangue, suor e lágrimas.
Lembro também, é claro, do drible de Pelé no goleiro uruguaio Mazurkiewicz, dos lançamentos de Gerson, dos muitos gols de Jairzinho, das atuações seguras de Everaldo e da final contra a cansada Itália. Com 11 anos, eu não tinha a menor ideia de que, enquanto vibrávamos e gritávamos com os gols, uma ditadura terrível amordaçava muitas vozes e silenciava para sempre muitos torcedores. A canção Pra Frente, Brasil!, que embalou minha alegria infantil, agora é triste lembrança de um período ufanista que mascarava um governo autoritário.
Contudo, Everaldo ficou imortalizado na bandeira do Grêmio, e aquele gol de Jairzinho, destroçando o esquadrão inglês, mostrou a um menino que o Brasil era capaz de enfrentar desafios imensos e vencer. E ainda é!