
Preservar ou não preservar, eis a questão. Todo ano, torcedores e profissionais de imprensa debatem a necessidade de os clubes escalarem de times mistos ou até reservas durante o Brasileirão. Desta vez, a discussão chegou mais cedo, depois que o Grêmio encarou o Ceará, pela segunda rodada do campeonato, com apenas três titulares. A medida, tão utilizada pela dupla Gre-Nal nas últimas temporadas, divide opiniões e, por isso, GaúchaZH ouviu preparadores físicos para entender a importância de poupar atletas em algumas partidas.
— A gente vai viver agora um momento que é especial. Ninguém tem a dose exata de como agir. Não existe regra. Antes da pandemia, com o calendário apertado, tínhamos que lidar com casos individuais para saber como cada atleta respondia aos treinos e, principalmente, aos jogos. A partir daí, você administrava seu grupo de acordo com as informações que recebia do centro de informações. Porque não é só o preparador físico. Se você tem um treinador que trabalha da mesma forma todos no elenco, ele se sente seguro para rodar o time caso algum jogador estiver mais cansado. Se tem um elenco mais jovem, você tem uma recuperação mais rápida. Então, você pode manter o mesmo time em uma sequência maior, trocando peças pontuais. Tem que analisar o todo — avalia Daniel Felix, profissional que atuou no Atlético-MG, Flamengo e compôs a comissão técnica de Vanderlei Luxemburgo no futebol chinês.
O principal argumento apresentado por quem defende a preservação se baseia nos exames de creatinoquinase (CK), que indicam o desgaste físico dos atletas que o aproximam de uma lesão muscular.
— Vai depender muito da importância do jogo, da competição, momento do ano, para preservar ou não. Também precisa levar em conta o que o departamento de fisiologia do clube entende como representar risco, quais os índices, métricas que o atleta atinge durante as partidas, bem como o impacto que essas geram no organismo e seu devido tempo de recuperação. Essas informações, desde que sejam interligadas, tanto a nível fisiológico, bioquímico e psicofísico, podem servir como como auxílio nas tomadas de decisões entre poupar ou não. Mas isso vai variar muito entre clubes e comissões. Essas avaliações são importantes para entender até que ponto a participação do atletas em diversas partidas está segura — resume o preparador físico do São Luiz, Anderson de Lazari.
No caso gremista, outro ponto citado é o desgaste decorrente das viagens. O próprio técnico Renato Portaluppi disse em sua entrevista coletiva que estava cansado do trajeto de cerca de cinco horas de Porto Alegre até Fortaleza.
— Às vezes, a viagem acaba desgastando mais do que o jogo, porque tem toda a situação da logística, de escalas. Grêmio e Inter estão viajando em voos fretados, e isso facilita, porque não precisa ficar três ou quatro horas no aeroporto. As pessoas falam que o atleta reclama, mas passa bem, tem mordomia, fica em hotel, tem fisiologista e nutricionista. Mas o tempo que ele tem de um jogo para o outro é muito curto. Não dá nem para treinar, às vezes. Então, o Grêmio pode ter pensado nisso. Quem viajou, não vai conseguir treinar direito. Por isso, deixou o pessoal treinando em Porto Alegre para enfrentar o Corinthians no sábado — avalia Márcio Vitória, que trabalhou no Novo Hamburgo no último Gauchão.
Às vezes, a viagem acaba desgastando mais do que o jogo, porque tem toda a situação da logística, de escalas
MÁRCIO VITÓRIA
Márcio ainda acrescenta o tempo de paralisação como explicação.
— A experiência nos coloca que, a partir do retorno das férias, do terceiro para o quarto jogo, o risco de lesão aumenta significativamente. E passamos por uma situação em que os atletas tiveram quase 120 dias de inatividade.
Influência da idade
Há outra coincidência entre os atletas que se fizeram ausentes na delegação gremista ao Ceará. Dos sete que permaneceram no Rio Grande do Sul, quatro têm acima de 30 anos de idade (Vanderlei, Geromel, Maicon e Diego Souza). Márcio Vitória, porém, ressalta que a idade não pode ser encarada como um sinônimo de desgaste maior.
— Essa situação é muito relativa. Eu trabalhei com o Diogo Oliveira no Brasil-Pel, que tem 37 anos e mesmo assim era uma das maiores quilometragens e os melhores índices físicos. A gente só tirava ele quando tinha três jogos consecutivos por uma questão de precaução, mas a idade não tem muito a ver. Às vezes, um atleta de 22 anos não tem a mesma capacidade de um jogador com 35 anos — pontua.
Mas nem todos os profissionais da área concordam com o que está sendo feito do lado tricolor. Para Andriane Padilha, ex-preparador de Ypiranga, Passo Fundo, Guarany e Grêmio Bagé, a temporada está recém começando e, por isso, é muito cedo para que os times abram mão de jogadores tão importantes.
— Entendo que não seria o momento de preservar ninguém. Assim como o Inter fez contra o Coritiba, deixando Boschilia e Thiago Galhardo no banco, mesmo vindo de um resultado negativo no Gre-Nal. Se eu fosse o treinador, colocaria os melhores para jogar. Os três pontos que o Grêmio disputou contra o Ceará são os mesmos que irá jogar contra o Corinthians. De repente, era mais fácil colocar força máxima contra o Ceará, mas não sei o planejamento interno deles (do Grêmio), como estão estruturando a semana deles. Mas eu discordo de preservar neste período. Todos estão voltando agora e carecem de valências físicas. Para mim, o melhor treino é o jogo. Quanto mais o jogador atuar, melhor condicionado vai ficar — opina.
Exemplo de Jorge Jesus
Um dos exemplos muito citados para contradizer a preservação de titulares é o Flamengo de 2019. Usando força máxima nas partidas, o time carioca conquistou a Libertadores e o Brasileirão, fato até então inédito no país.
Para mim, o melhor treino é o jogo. Quanto mais o jogador jogar, melhor condicionado vai ficar
ANDRIANE PADILHA
— Quem quebrou esse paradigma foi o Jorge Jesus, que usava sempre os titulares. Pensei que eles chegariam quebrados na semifinal (da Libertadores) contra o Grêmio, mas foi o contrário. Mas ele (Jesus) também chegou em meio à temporada. Uma pena ele ter ido embora, porque eu queria saber se com viagens longas durante todo o ano ele teria o mesmo comportamento. Nunca vamos saber — completa Padilha.
Já Daniel Felix, que trabalhou no clube rubro-negro antes da chegada do treinador português, pondera que aquele foi um caso de exceção.
— Não se pode colocar o que o Jesus fez no ano passado como regra. Têm equipes que viajam mais e isso também influencia na recuperação. É um tema muito complexo. Não adianta fragmentar. O caso do Renato (Portaluppi) também é um caso de sucesso. Ele roda o elenco há muito tempo e sempre chega — pondera.
Como se percebe, o assunto não é unanimidade nem entre preparadores físicos. Portanto, o debate se estenderá por mais algumas rodadas e, ao final da temporada, novos argumentos poderão ser acrescentados à mesa. Dependerá também de qual será a estrategia vencedora de 2020-2021.