VALERY HACHE, AFP
preso duas vezesHarvey Weinsteinsuspender suas atividadesJosé Mayer
Esses e outros tantos casos evidenciaram a força feminina na internet. Historicamente coadjuvantes em espaços tradicionais de debate, as mulheres amplificam e fazem valer a sua voz nos canais digitais — além de oferecer o ombro para as outras ou estimular alguma reação coletiva. Mas há efeitos colaterais, segundo alguns críticos: há exagero nas acusações? Podem estar havendo linchamentos virtuais?
"Reagimos, uma vez mais, a uma onda conservadora antidireitos, violenta e intolerante. Essa ofensiva atropela mudanças culturais, composições familiares e afetivas e tenta impor padrões de masculino e feminino"
Na mesma página recente de um site de notícias, um artigo me chama para refletir sobre o futuro do feminismo. Logo abaixo, outra postagem exibe a foto de uma jovem de cabelos curtos portando um cartaz "o machismo mata". A primeira se refere a um movimento que "começou em 2017" com as denúncias de assédio no mundo do espetáculo, artístico e desportivo, sob uma névoa de suspeição sobre a sinceridade das vítimas. Já a foto remete à persistência de um velho fenômeno. Essas meninas de peitos de fora nos lembram que mulheres são assassinadas e caladas por serem mulheres e que a luta por respeito, igualdade, direitos e cidadania vem de longe.
O que antes era um "ouvir falar" hoje se mede em números e estatísticas. Sabe-se, por exemplo, que são necessárias de quatro a seis mulheres para ocupar a mesma presença social de um homem, que aquela tentativa de convencer-nos de que estamos loucas tem um nome, "gaslighting", e que aquele cara que interrompe toda hora comete um "mainterrupting". Fontes diversas confirmam que uma a cada três brasileiras com mais de 16 anos sofreu violência nos últimos 12 meses e 40% passou por assédio. A cada 11 minutos, houve um estupro.
O papel do movimento de mulheres é uma ação permanente e duradoura. Não estamos começando uma resistência a partir de Hollywood.
Reagimos, uma vez mais, a uma onda conservadora antidireitos, violenta e intolerante. Essa ofensiva atropela mudanças culturais, composições familiares e afetivas e tenta impor padrões de masculino e feminino. As quatro últimas décadas foram marcadas por aquisições — novas leis para coibir violências, políticas públicas e tratamento igualitário —, mas, em paralelo, cresceu a influência de setores conservadores e ressurgiu uma extrema-direita.
De dentro do Congresso, de onde saíram importantes decisões desde 1988, originam-se iniciativas para reduzir direitos, proibindo o aborto até mesmo nos casos de estupro. O ambiente retrógrado e misógino que se formou rejeita o conceito de gênero, consagrado nos documentos da ONU, sendo retirado dos conteúdos educacionais. Propostas impensáveis expõem trabalhadoras grávidas e lactantes ao ambiente insalubre e penoso, como recados diretos de que a nossa breve era de direitos acabou.
A Revolução Francesa teve um day-after, a Declaração dos Direitos das Mulheres e Cidadãs, uma resposta à famosa Declaração dos Direitos do Homem (1789). Suas autoras com mais sorte acabaram em hospícios ou encarceradas, e as líderes, como Olympe de Gouges, levadas ao cadafalso. Seguiu-se a duradoura e cíclica luta pelo direito a educação, voto, trabalho, direitos sociais, sexualidade, reprodução e espaços de poder.
O novo feminismo global traz as características da pós-modernidade, concomitante às velhas chagas. Tempo em que o corpo fala performaticamente, seja na escrita sobre a pele, pelos turbantes, pelas vozes e tambores e especialmente pelas redes sociais. De raiz patriarcal, a desigualdade de gêneros permeia nossa sociedade e transmite a noção de ser parte da natureza humana. Mas produz sofrimentos, medo, silêncio. Daí porque pode-se dizer que as pontas de um iceberg começam a ser vistas quando denúncias saem de lugares jamais imaginados e de quem não estava no script. Uma vez mais, as próprias mulheres estão derrubando as barreiras ao seu empoderamento e à igualdade.
"A consequência é que, misturado a um conjunto de denúncias de efetivo assédio sexual, coerção ou estupro, há denúncias contra condutas masculinas realizadas a partir do consentimento feminino"
Um dos poucos movimentos que a sociedade brasileira tem realizado no sentido de promoção de justiça, nesses últimos anos, está nas lutas de grupos subalternizados. Pessoas negras, mulheres, gays, lésbicas e trans têm se organizado politicamente e vêm agindo no sentido de desconstruir preconceitos e opressões. Muito bom.
Entretanto, em meio a esse processo fundamentalmente justo, há pontos que precisam ser debatidos. Ideias das feministas radicais têm se difundido de forma irrefletida. Para elas, vivemos em sociedades patriarcais tão opressivas que as mulheres não têm condições legítimas de autonomia para se responsabilizar por seu desejo e manifestar seu consentimento ou recusa em interações heterossexuais.
A consequência é que, misturado a um conjunto de denúncias de efetivo assédio sexual, coerção ou estupro, há denúncias contra condutas masculinas realizadas a partir do consentimento feminino. Chamo de efetivo assédio sexual casos como o de um Harvey Weistein, um homem que tentava obter vantagens sexuais de mulheres ameaçando prejudicá-las com o seu poder. Isso deve mesmo ser denunciado e punido. Do mesmo modo, quaisquer casos em que homens desrespeitam recusas de mulheres, forçando-as a interações sexuais (desde estupros até os trogloditas que no carnaval de rua seguram mulheres pelos braços).
Mas há também casos de denúncias feitas a partir da perspectiva das radfems, onde o consenso não vale como linha demarcatória entre o aceitável e o inaceitável. Mulheres que beberam muito, manifestaram seu consentimento para transar, mas no dia seguinte acordaram arrependidas — acusam o homem de estupro. Mulheres acusam homens de não respeitarem acordos monogâmicos, e transformam isso em denúncias públicas que viram grandes ritos de humilhação dos homens (e gozo coletivo das mulheres).
Há até um caso raro em sua natureza explícita, mas sintomático das ideias de fundo, de uma mulher que acabou por denunciar outra mulher de a ter estuprado, após hesitar por um bom tempo... porque afinal não se tratava de um homem. A confusão entre luta contra o machismo e luta contra os homens está disseminada.
Escrevi um livro, A vítima tem sempre razão?, para tornar esse debate amplo e esclarecido. Militantes mais dogmáticos reagiram à proposta desqualificando-a de antemão. É compreensível, tanto política quanto psicanaliticamente. Contudo esse é um debate que interessa à sociedade como um todo. E é assim que deve ser tratado.
Telia Negrão
jornalista, mestre em
Ciência Política
Francisco Bosco
ensaísta, autor de
A Vítima tem Sempre Razão? (2017)