Carlos Macedo, bd
"Censurar as artes é ferir de morte nossos sonhos de viver em uma sociedade verdadeiramente democrática"
Quando a exposição Queermuseu, no Santander Cultural, foi abruptamente encerrada após uma onda de protestos, nós, do meio artístico, ficamos perplexos com esse ato de censura. Tal episódio foi o disparador tanto de outros de natureza semelhante Brasil afora, quanto de discussões sobre censura nas artes. Aliás, eis um tema que não é novo, sobretudo quando se trata de censurar obras de arte que contenham nudez ou alusões sexuais. Também não é um tema que facilite consensos. Em um artigo de 1901 intitulado The Nude in Museums e publicado na revista americana The Atlantic, o autor, anônimo, já afirmava que as controvérsias estabelecidas pelos que defendiam e pelos que atacavam os nus raramente resultavam em qualquer solução conciliatória.
Hoje, como ontem, um dos argumentos usados para justificar a censura às artes, sobretudo a obras em que o nu aparece, é o de que podem causar dano às crianças. Svetlana Mintcheva, no livro Censoring Culture, chama a atenção para o fato de que, no contexto norte-americano, o argumento de proteger as crianças vem sendo usado também de modo político por parte de setores conservadores da sociedade, e acaba se tornando um dos potenciais modos contemporâneos de censura.
Claro está, portanto, que a censura às artes não é hoje apenas um problema brasileiro, mas mundial. Farida Shaheed, relatora especial do campo de direitos culturais junto às Nações Unidas, em 2013, diante do Parlamento Europeu, criticou duramente os inúmeros casos de censura às artes que vêm ocorrendo na última década, e alegou que "controlar, restringir ou remover expressões artísticas da vista do público" significa empobrecer a humanidade.
Para mim é ainda mais do que isso: significa atacar as próprias ideias estruturantes das sociedades democráticas contemporâneas, aqueles valores ideais que, mesmo que não totalmente realizados, se almeja um dia realizar: as noções de tolerância e de pluralismo de perspectivas, herança direta das guerras de religião entre católicos e protestantes, e o direito à liberdade de expressão, consolidado no artigo 11 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Censurar as artes, em suma, é ferir de morte nossos sonhos de viver em uma sociedade verdadeiramente democrática.
"O que a controvérsia sobre censura em 2017 revela é que duas moralidades antagonistas disputam o debate artístico: progressistas e conservadores, paladinos das minorias e guardiães da sociedade dita normal"
O tema mais comentado em 2017 foi a arte. O tema menos comentado em 2017 foi a arte.
Nas polêmicas envolvendo censura e arte, as grandes ausentes foram as obras. É duvidoso que o público tenha saído desses debates mais ilustrado sobre o que são e como vê-las.
Em parte, isso decorre de a direita emergente ter-se servido da arte contemporânea apenas como pretexto para marcar sua voz. Para tanto, recorreu a uma mitologia populista e autoritária: a revolta da "maioria silenciosa" contra as maquinações da "elite cultural".
Certas correntes da arte contemporânea seriam de todo alheias a essa situação? Parte do que responde por esse rótulo vago se define pela crítica a conceitos tradicionais como obra, materialidade, forma, técnica, autoria. O urinol centenário de Duchamp teve sua descendência em um carneiro morto (Damien Hirst, 1994), em uma cama desfeita (Tracey Emin, 1999) expostos em galerias.
Práticas desse tipo nem sempre furtaram a arte aos excessos do militantismo. Um pintor socialista engajado podia ainda produzir uma tela que chamava o julgamento sobre suas qualidades estéticas para além da mensagem política. O quanto se pode dizer o mesmo de pichações ou de objetos cotidianos expostos com mínimas intervenções, acompanhados de um denso texto explicativo que os relacione a alguma causa do dia? O risco dessa rarefação material da arte é o de levar o público a julgá-la mais segundo a posição que ela assume na discussão política do que em seu próprio mérito.
Fez-se assim mais tênue a película de separação entre a arte e a vida social com suas tensões, suas polêmicas. O que a controvérsia sobre censura em 2017 revela é que duas moralidades antagonistas disputam o debate artístico: progressistas e conservadores, paladinos das minorias e guardiães da sociedade dita normal. Em uma atmosfera ultrapolitizada, ambos podem exercer um arbítrio injusto sobre o que deve ser dito, visto, exposto. Não deveríamos permitir que a autonomia da arte como visualidade seja esquecida sob esse palavrório. Mas é preciso que a própria arte também ajude.
Daniela Kern
professora no PPG do
Instituto de Artes da UFRGS
Rodrigo de Lemos
doutor em Literatura,
professor da UFCSPA