RAPHAEL ALVES, afp
"As escolhas de Diego Souza e Diego são algumas decisões questionáveis de um treinador extremamente competente, mas que, como todo mundo, possui defeitos. E um deles é o apego, quase que sentimental, a jogadores por 'confiança'"
Um técnico idolatrado. Um atacante carismático. Um futuro Bola de Ouro. Uma equipe que empilhou vitórias nas Eliminatórias, incluindo os 4 a 1 no Uruguai e o 3 a 0 na Argentina. Diante de tudo isso, é quase impossível segurar o favoritismo de uma camisa sempre pesada para a Copa de 2018.
Favoritismos andam lado a lado com o Brasil desde 1950, talvez a primeira Copa do Mundo na qual a amarelinha entrou com o peso de vencer a qualquer custo. Com a hegemonia mundial em 1970, o Brasil passou de time talentoso a potência. Historicamente, as equipes mais favoritas sempre se deram mal: o incrível Brasil de 1982 tinha tantos craques que faltou um equilíbrio tático na equipe, muito por conta da perda de Batista. O Brasil de 2006 e seu "quarteto mágico" parou na França e na pouca preparação. Em 2014, a equipe comandada por Luiz Felipe Scolari era favorita absoluta até pegar o primeiro rival europeu com peso.
A questão é que, ao longo dos anos, o Brasil rende mais quando sofre nas Eliminatórias e se prepara melhor para os sete jogos da Copa do Mundo. Foi assim em 1994 e 2002, últimas taças brasileiras. Em 2017, teve domínio total no continente, mas desempenho abaixo do esperado contra Colômbia e Inglaterra.
A começar, o "grupo fechado". Mesmo negando e declarando publicamente que o grupo que viaja para Socchi ainda tem sete vagas em aberto, Tite é um técnico conservador, no sentido das ideias: gosta de manter uma linha de coerência e não abandona ela até o fim. As escolhas de Diego Souza e Diego (o jogador mais criticado do Flamengo) são algumas decisões questionáveis de um treinador extremamente competente, mas que, como todo mundo, possui defeitos. E um deles, já mostrado no Corinthians de 2013, é o apego, quase que sentimental, a jogadores por "confiança". São os homens de Tite e poderão estar na Rússia, mesmo com Luan chefiando o Grêmio campeão da Libertadores e Dudu fazendo horrores no Palmeiras.
O último aspecto é tático, e ficou evidente no empate sem gols contra a Inglaterra: a Seleção tem dificuldade de construir jogadas contra adversários taticamente fechados e que apostam em linhas defensivas. Isso se deve muito à procura de Tite por um jogo mais lateral, que abuse do talento de Daniel Alves e Marcelo e das infiltrações de Paulinho. Sobram no meio — região onde o desequilíbrio no adversário é maior — apenas Casemiro e Renato Augusto, em claro declínio físico. As opções no banco não resolveram e o Brasil "travou" contra Colômbia e o time inglês.
Por falar em "travar", falta ainda um teste mais amplo para o Brasil. O futebol que Tite encontrará na Rússia é muito semelhante ao da Eurocopa, um pouco do que a Inglaterra mostrou: espaço zero, intensidade mil, marcação cerrada. Retranca ou não, o Brasil precisa testar seu potencial ofensivo contra seleções de nível maior — lembre-se que o amistoso de preparação em 2014 foi contra a... Sérvia, gol de Fred e rival na fase de grupos em 2018.
Tática, história, convocações... mesmo assim, o Brasil ainda é favorito. Talvez sempre será. Mas só ganha quem joga. E, para ganhar uma Copa do Mundo, é preciso pensar um pouco a mais do que as Eliminatórias e os gols de Jesus. Afinal, favoritismo exagerado não pode fazer bem. O Mineirão que o diga.
"Enquanto muitos ainda criticam a ciência e o estudo no esporte, Tite mostra o quanto isso é importante a cada jogo. Enquanto outros zombam do motivacional no futebol, Tite empatiza com a história de cada atleta e cultiva vencedores"
Era maio de 2002 e, pela porta frontal da movimentada Rua da Alfândega, um contestado treinador gaúcho ouvia impropérios e pedidos por Romário na Copa, ao sair da antiga sede da CBF no Rio de Janeiro.
Às vésperas de convocar a Seleção que iria vencer o Penta, Luiz Felipe Scolari era persona non grata, e foi massacrado por jornalistas e torcida até voltar do Oriente com a taça. Anos antes, nas Eliminatórias de 94, o Brasil fazia apresentações claudicantes, acumulando derrotas históricas e embarcando para os Estados Unidos sob desconfiança generalizada. Até hoje há quem critique o trabalho de Parreira e credite todo o mérito do Tetra a Romário e Bebeto, ignorando o equilíbrio tático e coletivo que tinha aquele time.
O brasileiro nunca soube o que era ser unânime em torno de um treinador da Seleção e suas ideias. Até Tite. Isso por si só já é revolucionário.
Assim como é inovador o fato de Tite "bater ponto" na CBF e moldar uma metodologia de trabalho que certamente será seu maior legado como técnico da Seleção. Das rotinas de treino às viagens, da observação de jogos à analise de desempenho, do contato com treinadores dos clubes às conversas com os atletas, o 2017 consolidou o estilo Adenor. Montou uma equipe multidisciplinar e soube escutá-la, deu a ela o espaço para opinar e trabalhar e poder assim diminuir a chance de errar nas suas decisões como treinador. O método Tite é vanguardista para o Brasil. O resultado foi visto em campo: dos seis jogos de Eliminatórias no ano, ganhou quatro e empatou dois. A vaga para a Copa da Rússia foi confirmada a quatro rodadas do fim.
Ao resgatar a "geração fraca" de 2014 e dar a ela um modelo de jogo, uma concentração competitiva, uma confiança de que cada atleta terá suas melhores características usadas e potencializadas por ideias coletivas, Tite publicou seu manifesto: na CBF há um treinador de futebol.
Enquanto muitos ainda criticam a ciência e o estudo no esporte, Tite mostra o quanto isso é importante a cada jogo. Enquanto outros zombam do motivacional no futebol, Tite empatiza com a história de cada atleta e cultiva vencedores.
Claro que ainda falta muito: saber jogar contra uma linha de 5, buscar dinâmicas ofensivas diferentes, ser competitivo com adversários que proponham o jogo. O Brasil não está pronto.
Mas se em 1994 e 2002 águas turbulentas embalavam a Seleção, o equilíbrio com que Tite conduz a nau brasilis é inédito. Suas ideias são consistentes e a execução, apaixonante. E na Rússia saberemos a Titebilidade do Hexa.
Leonardo Miranda
jornalista do globoesporte.com no Blog Painel Tático e apresentador do Época Esporte Clube
Gustavo Fogaça
comentarista da Rádio Gaúcha
e analista de desempenho