Roberto Cermak/Multishow
"No mesmo ano em que Bolsonaro oficializou sua candidatura a presidente, vimos também Pabllo Vittar e Anitta no topo das paradas de sucesso jogando 'bem na sua cara' um grito (ou BERRO) de resistência em meio a todo o conservadorismo que avança no país"
2017 foi um ano bem contraditório. Vimos os já escassos direitos das minorias serem exterminados pelo Congresso Nacional e pelas demais câmaras legislativas numa onda de retrocessos sociais que não cessa. Mas, no mesmo ano em que Bolsonaro oficializou sua candidatura a presidente, vimos também Pabllo Vittar e Anitta no topo das paradas de sucesso jogando "bem na sua cara" um grito (ou BERRO) de resistência em meio a todo o conservadorismo que avança no país.
Vale sublinhar: estamos falando de uma drag queen e de uma funkeira. Elas subvertem os padrões hegemônicos de gênero e sexualidade, tanto no campo estético quanto no político. Pabllo Vittar é uma drag queen com voz e representatividade e Anitta é protagonista não só de suas músicas, mas também de sua carreira, depois de chutar um contrato milionário com um empresário em troca de autonomia. Isso, decerto, incomoda e gera reações conservadoras. É ameaçador para o status quo ver representações até então periféricas ocupando espaços de poder. Por outro lado, é exatamente isso que cativa milhões de pessoas que sempre se sentiram à margem e que agora enxergam em destaque alguém que as represente.
Ainda antes do estouro do single Sua Cara, Pabllo Vittar emplacou o hit do verão Todo Dia, em parceria com o rapper gay Rico Dalasam. A música reinou absoluta durante todo o Carnaval, projetando a carreira de Pabllo Vittar ao infinito e além. "Eu não espero o Carnaval chegar pra ser vadia/ sou todo dia, sou todo dia" fala sobre liberdade. "Se ser livre é ser vadia, somos todas vadias" dizia o lema da marcha feminista realizada em 2011 em diversas cidades do mundo pela autonomia das mulheres sobre seu corpo: liberdade sexual e reprodutiva, direito ao aborto e repúdio contra o assédio. Eram milhares de mulheres exigindo protagonismo sobre sua própria história. O próprio termo "vadia", usado muitas vezes de forma pejorativa contra mulheres consideradas "liberais" nos costumes, foi reapropriado e ressignificado. É notável como os ecos desse BERRO coletivo são ouvidos até hoje, mas ainda há muito a ser assimilado.
O clipe de Vai Malandra, novo single de Anitta lançado em dezembro, incomodou muita gente já na primeira cena: um close na bunda da funkeira usando um minúsculo shortinho vermelho, sem qualquer pudor em ostentar celulites, algumas manchas e flacidez. É com esse corpo sincero e cúmplice que Anitta dita as regras do seu sucesso, à revelia dos argumentos moralizantes que tentam desqualificar o seu trabalho e a sua representatividade.
"O que nas letras cantadas por Anitta, quase sempre considerações sexuais explícitas, aparece como a mulher no papel dominante, nas músicas da maranhense Vittar assume um espírito transgressor para além dos gêneros e com uma, digamos, poética mais bem acabada"
Anitta se encaminha para o sucesso internacional. Nada mal para quem tem apenas quatro anos de carreira efetiva e já é milionária. Sei que parece impertinente levantar esta questão agora, mas, em circunstâncias normais, quantos anos de sucesso ela poderá ter pela frente? Difícil imaginar que mudanças ela processará em seu estilo para se manter no topo, pois o repertório de canções que vem mostrando tem data de validade, assim como seu próprio corpo de mulher jovem, bonita e gostosa. A Anitta que vemos e ainda veremos por algum tempo é refém da imagem, uma atriz-cantora da era do videoclipe. Na verdade, mais atriz e entertainer do que cantora. Sem a visão de corpo e coreografia, sua voz não se sustenta.
É uma voz chata e repetitiva. Mas será que ela quer seguir cantora depois que a exuberância física se for? Se parasse para pensar nisso (o que seria um erro), poderia se mirar no patético exemplo de Gretchen. E se a música é hoje apenas uma parte do "fenômeno Anitta", vale pensar que se ela planeja uma continuidade musical de sucesso, não apenas de revival — terá de se preparar melhor. Já Pabblo Vittar, parceira de Anitta no clipe de Sua Cara, um dos recordistas de visualizações no YouTube em 2017, inverte as expectativas de três gerações de cantores de voz "feminina", como Ney Matogrosso, Edson Cordeiro e Filipe Catto. Vittar é propriamente feminino, assume o papel — mesmo sem ser transexual.
O que nas letras cantadas por Anitta, quase sempre considerações sexuais explícitas, aparece como a mulher no papel dominante, nas músicas da maranhense Vittar assume um espírito transgressor para além dos gêneros e com uma, digamos, poética mais bem acabada — mas igualmente ousada, como o verso "o tamanho de minha bunda vai te assustar", da música Minaj, quase 25 milhões de visualizações. O primeiro sucesso de Vittar, K.O., deste ano, já tem mais de 250 milhões de visualizações no YouTube.
Milhões e milhões é como se faz a conta das duas. Mas, se Anitta se restringe ao funk e suas variações dançantes, Vittar também se ocupa do samba e é um cantor com amplas possibilidades de crescimento.
Nanni Rios
jornalista, sócia do centro
multicultural Aldeia
JUAREZ FONSECA
jornalista e crítico musical