O lançamento do single Vai Malandra na última segunda-feira (18) não apenas turbinou ainda mais a popularidade de Anitta como também levantou a questão sobre a qualidade da atual música brasileira. O debate surgiu quando Lulu Santos, no Twitter, publicou um comentário que foi lido pelos fãs da cantora como uma crítica indireta ao single, que alcançou o posto de primeiro hit nacional a atingir mais de um milhão de acessos no Spotify no dia de estreia. Anita também se tornou a primeira artista brasileira a emplacar dois hits nos TOP 50 da principal plataforma de streaming no mundo.
"É tanta bunda, polpa, bumbum granada e tabaca que a impressão que dá é que a MPB regrediu para a fase anal", escreveu Lulu Santos um pouco antes do lançamento de Vai Malandra, sofrendo uma enxurrada de críticas dos fãs da cantora.
Mesmo contestada, a declaração de Lulu também deu eco a quem considera que o cenário musical no país já viveu tempos melhores. De acordo com Juarez Fonseca, crítico musical e colunista de Zero Hora, não existiu a tal "fase anal" citada por Lulu Santos numa referência irônica ao close dado no bumbum de Anitta nos segundos iniciais do clipe. Avaliando o comentário do guitarrista, Fonseca observa o incômodo que artistas do funk e do sertanejo causam em quem representa a música tradicional.
— Os músicos brasileiros no geral sentem como se o palco tivesse sido invadido por uma horda de bárbaros — observa.
Essa invasão é facilmente entendida se for considerado que, a partir dos anos 1990, com a internet e o acesso às mídias eletrônicas, cada pessoa em sua casa adquiriu o potencial de ficar famosa.
— É um fenômeno internacional. Com a facilidade de consumo da música veio a facilidade de criação da música, a democratização da música — observa Carlos Eduardo Miranda, produtor e jurado de reality musicais.
Para Juarez Fonseca, a ascensão de Anitta se deve mais à performance corporal do que à voz — faltaria qualidade técnica para que ela fizesse sucesso pelo principal instrumento de um cantor. Em relação às letras das músicas do funk e do sertanejo, criticadas por celebrarem o sexo e os encontros amorosos de forma explícita, Fonseca reitera a opinião.
— É uma música fácil. Isso mostra como a audiência brasileira caiu de nível. Não posso comparar Elis Regina à Anitta, em termos artísticos, de repertório. Posso comparar as duas como cantoras, e as semelhanças terminam aí.
Ex-integrante das bandas gaúchas Os Cascavelletes e Graforréia Xilarmônica, o músico Frank Jorge, que é professor do curso de Produção Fonográfica da Unisinos, enxerga semelhança na forma como o rock e o funk foram recebidos. Elvis Presley, por exemplo, era mostrado em programas de TV somente da cintura para cima, de forma a evitar que o rebolado sensual do astro do rock chocasse o espectador sentado no sofá.
— Quando o rock começou a surgir com força, em 1955, 1956, toda a galera anterior, o Dean Martin, o Frank Sinatra, achava uma coisa selvagem, totalmente sem nível e sem qualidade perto do que era o estilo do Sinatra, que dialogava com o jazz — observa Frank Jorge.
Apesar de não gostar de funk — observação feita com contundência —, o músico enxerga contribuição artística no gênero nascido nas periferias e, para ele, a declaração de Lulu Santos é "papo velho". Também não acredita que as letras das músicas devam ser necessariamente profundas.
— Letra de canção pode ser bem feita, singela, simples, e pode ser uma onomatopeia, um grunhido — defende o roqueiro que em outubro abriu o show de Paul McCartney, beatle responsável por Ob-La-Di, Ob-La-Da, faixa lançada em 1968 e até hoje questionada pela letra considerada vazia de significado.
Para Juarez Fonseca, a contribuição de Anitta com o último single, gravado no Morro do Vidigal, no Rio, foi justamente dar espaço à vida na comunidade — ato que pode ser visto como político, considerando que a classe média, na visão de Fonseca, sempre evitou enxergar a miséria das favelas. Detalhe que acabaria dando vantagem ao funk em relação ao sertanejo, gênero que, para Carlos Eduardo Miranda, apenas reproduz, sucesso após sucesso, independente da dupla, o mesmo padrão musical.
— É uma música feita em torno da reprodução. É para a pessoa dançar e arranjar alguém, ir num barzinho e arranjar alguém. Para encher a cara e namorar, curtir e zoar. O funk é uma voz de uma população renegada a um plano inferior, gritando sua vida e expressando o que está vivendo. Do jeito mais estúpido e bizarro que possa ser.
Fonseca vai além e define o que estaria faltando tanto ao funk quanto ao sertanejo — gênero mais ouvido pelos brasileiros em 2017, de acordo com as listas divulgadas pelo Spotify: criatividade na composição.
— Se colocarem dez discos de música sertaneja atual, não vou saber dizer quem é quem. Toda essa turma de hoje, não sei identificar ninguém. As músicas são todas muito parecidas e falam basicamente dos mesmos temas — lamenta.
Segundo Fonseca, Anitta, expoente da música que não é tradicional, só conseguirá perdurar no gosto dos fãs se deixar de dar ênfase à performance corporal e passar a dar atenção à técnica vocal e a melhores composições.
— Imagina a Anitta velha? Ela depende do físico, do corpo. Ela tem que ser mais elaborada. A vida útil dela como objeto sexual não vai ter muito tempo — aconselha.