Em evento comemorativo aos 75 anos do Sindicato do Ensino Privado do RS (Sinepe/RS), um dos focos foi o futuro da aprendizagem e da inovação na educação. Para projetar as possibilidades, o futurista Tiago Mattos destacou, em entrevista a GZH, a importância de sair da lógica industrial no ambiente de trabalho, e entender que, com a transformação digital, tudo o que puder ser automatizado, personalizado ou descentralizado, será – e a escola precisa começar a trazer esse debate.
O que o futuro do trabalho tem a ver com o futuro da educação?
Eu, nos últimos 10 anos, comecei a estudar futuros. Eu digo que gosto de “futuros”, no plural, porque o futuro no singular é mais determinístico, como se só houvesse um futuro, e, se só tem um e a gente não pode interferir, por que a gente está estudando e por que a gente está dando essa entrevista? O futuro no singular esquece da coexistência. O pessoal às vezes pergunta “Ah, Tiago, o futuro da aprendizagem vai ser presencial ou online?”, e eu digo: os dois. Toda vez que a gente usa o “ou”, a gente está indo para o passado. Toda vez que a gente usa o “e”, a gente está indo para esses futuros. Futuro no singular esquece essa ideia, que eu acho que a gente já venceu, felizmente, de que se precisa cada vez mais de inclusão e diversidade nos ambientes mais ricos. Se só existe um futuro, quem está decidindo que futuro é esse? E, quando eu me dei conta de “futuros”, no plural, eu comecei a estudar vários futuros. Não só vários futuros da alimentação, da mobilidade, da saúde e da aprendizagem, como vários futuros dentro da aprendizagem. Todos eles acabam se misturando, porque a gente começa a ver alguns padrões que servem tanto para a saúde quanto para a aprendizagem, por exemplo. E a mesma coisa no trabalho. Uma vez que o trabalho é uma grande transversal nisso tudo, a gente começa a entender como vai ser o médico e a médica do futuro, como vai ser o advogado e a advogada do futuro, como vai ser o professor e a professora do futuro. E eles têm denominadores comuns.
Que exemplo você pode dar de um denominador comum?
Eu costumo dizer que o pessoal está confundindo muito transformação digitalizada com transformação digital. O fato de uma coisa virar "zeros e uns" não faz dela digital, e o fato de uma coisa estar no mundo físico e tangível pode permitir que ela seja digital. Então, digital não é ser virtual. Não são sinônimos. Eu costumo dizer que há quatro forças dominantes do digital, que definem se uma coisa é digital ou não é. Tudo que puder ser digitalizado, será. Tudo que puder virar zeros e uns, virará. Mas, quando a gente transforma uma coisa em zeros e uns, ela é só digitalizada. Ela não é digital. Para ser digital, tem outras três forças que emergem daí: tudo que puder ser automatizado será, tudo que puder ser personalizado será e tudo que puder ser descentralizado será. Hoje, muito do trabalho tem uma lógica industrial, e a gente nem se dá conta. Como é uma indústria? A gente pega um monte de matéria-prima e coloca as pessoas em áreas, departamentos. Cada pessoa faz uma atividade só repetidamente, até se tornar uma especialista. Vai transformando essa matéria-prima até sair um produto pronto, mas massificado. Ele é sempre igual para todo mundo, porque eu tenho que ter ganho de escala, afinal, se eu personalizo cada um deles, eu não tenho a mesma forma. A gente nem se dá conta mais de como o trabalho responde a isso. Como a gente criou matérias-primas, sejam elas tangíveis ou intangíveis, departamentalizou o trabalho, repete as atividades incessantemente, foca numa hiperespecialização e massifica a entrega. Uma vez que a gente faz isso, a gente está em dissonância com esse mundo digital.
A que você se refere, quando fala que tudo que puder ser descentralizado, será?
A descentralização é tirar as pessoas todas do mesmo lugar e espalhá-las pelo mundo. Eu fico um pouco surpreso quando o pessoal resiste ao trabalho remoto, por exemplo. O trabalho remoto não é um fenômeno da pandemia, ele é um fenômeno da era digital, onde eu permito que as pessoas trabalhem de onde quiserem, como quiserem, com os meios de produção próximos dela. O aparelho celular permite que você tenha mobilidade. Uma vez que você tem mobilidade, por que você tem que se sentar em uma redação para escrever um texto, se o meio de produção está descentralizado? O seu cérebro é um meio de produção, a sua inteligência é um meio de produção. Então, a correlação direta entre esses futuros, esses estudos de futuros, da aprendizagem, por exemplo, com carreira, é entender que a carreira será descentralizada. Eu não vou ter mais uma carreira, porque a carreira nada mais é do que uma esteira industrial para uma trajetória profissional. Você entra como estagiário, coloca umas pecinhas, você vira pleno, coloca umas pecinhas, você vira diretor, coloca umas pecinhas, você sai na esteira do sucesso. Então, quando a gente cria um plano de carreira, a gente está dando uma entrega industrial para o mundo digital. Quando a gente cria uma trajetória profissional, a gente está limitando as possibilidades de um ser humano a um único caminho. Eu já estou na quarta atividade profissional diferente, porque não é uma troca: elas são cumulativas, e eu acho que esse é um entendimento que temos falado pouco nos ambientes educacionais. A gente ainda faz perguntas como "que faculdade que você vai fazer?”, quando, na verdade, podem ser faculdades, ou a pessoa pode ser autodidata, ou pode empreender e aprender fazendo. Eu tenho uma visão muito do “e", não do “ou”, então eu não acho que a pessoa, ao ser autodidata, vai matar a universidade. Elas respondem a questões diferentes.
Como é que se reestrutura a escola para lidar com toda essa diversidade de futuros e, ao mesmo tempo, dar segurança aos alunos de como chegar aonde querem?
Uma coisa interessante é pensar no estudo de futuros desde cedo. A gente normalmente estuda a História, que são os passados. A gente explora pouco os futuros, e eu costumo dizer que quem não pensa sobre os futuros, cria o presente com as ferramentas do passado. Eu posso estar em 2023, mas com a mentalidade de 2003, com a mentalidade de 1983, com a mentalidade de 1923. Posso ter valores políticos, sociais, educacionais antiquados. Então, se a gente não estica o olhar pra essas possibilidades de futuros, o que a gente tem de matéria-prima? Só o passado. Agora, se eu começo a esticar possibilidades de futuros, é como se eu me corrigisse no tempo. Um dos papéis que nós, educadores, educadoras, temos é ajudar não só as escolas a pensarem também em futuros, como também as famílias. A escola pode ter um plano de aprendizagem revolucionário, mas, se a família também não tiver esse olhar, a força dela vai ser muito maior. Me parece ingênuo a gente fazer uma transformação só na estrutura educacional. A gente também tem que fazer um trabalho de cidadania que transborde a estrutura da escola, que chegue nas famílias, que sensibilize as famílias, porque isso é muito mais denso no dia a dia do que no horário que a criança ou o adolescente passa na escola. E aí a gente tenta entender essa troca que a instituição tem com as famílias. Será que é importante ter só aquela reunião pra dizer “olha, o plano educacional desse ano vai ser assim, o projeto que vocês vão ter é assado”, ou será que a escola como ambiente de “e”, e não só de “ou”, também tem que criar trocas, conversas, debates sobre questões de cidadania e pensamento contemporâneo?
Mas como dar as ferramentas para os jovens, e às vezes jovens de baixa renda, para que eles tenham a mesma maleabilidade de carreira no futuro?
Esse é o maior desafio da humanidade, não só nosso, aqui. Hoje, a gente vive um ambiente tecnológico que cria cada vez mais desigualdade. Como a gente resolve isso? Acho que ninguém tem a resposta clara, mas a gente não pode descuidar disso. Então, uma vez que a gente está falando aqui para um ambiente de diretoras e diretores de escolas particulares, eu deixo uma pergunta: como a gente está se integrando com esse outro lado da sociedade? Uma vez, eu fui falar para a escola mais cara do Brasil, em São Paulo, e uma mãe, depois que terminou a palestra, perguntou, querendo criticar a escola: "O que você pensa de diversidade e inclusão? Porque eu acho que a gente, aqui, está numa bolha. A gente tem pessoas privilegiadas e a gente não tem tido contato com outras crianças de outras realidades”. Aí eu perguntei: "Mas em que praça que você vai? Em que clube que você vai? Em que festas que você vai? Porque se você delegar à escola isso, você está tirando a sua autorresponsabilidade”. Se você for sempre ao mesmo clube, às mesmas festas e à mesma praça, não vai ser a escola que vai resolver a questão de diversidade. A questão de diversidade é sobre quantas vezes você leva o seu filho de carro ou de aplicativo para a escola e quantas vezes você leva o seu filho de transporte público. Se você não tomar essa decisão, talvez você seja também responsável por isso.