Um projeto criado pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul que ganhou asas durante a pandemia, ajudando inicialmente estudantes de escolas públicas de Osório, Maquiné e Tramandaí a terem acesso às aulas online por meio de smartphones restaurados, voará ainda mais alto. O Alquimia II passará a tratar todos os telefones celulares apreendidos no Estado, permitindo ajudar também pessoas em vulnerabilidade social fora das escolas.
No projeto piloto, ainda no segundo semestre de 2020, 120 smartphones foram restaurados por meio da ação e (outros 106 destinados pela Receita Federal, oriundos de apreensões). A iniciativa foi tão bem-sucedida, que no mesmo período acabou replicada pelas Promotorias de Justiça nas cidades de Lajeado, Santiago, São Borja e Bento Gonçalves, somando outros 190 telefones entregues naquele ano.
E tudo começou quando o promotor de Justiça Criminal de Osório, Fernando Andrade Alves, soube da campanha da Escola Estadual de Educação Básica Lourenço Leon Von Langendonck, de Maquiné, que pedia celulares para os estudantes continuarem as aulas a distância, nos primeiros meses da pandemia. Junto com a promotora Regional de Educação de Osório, Cristiane Della Méa Corrales, e em parceria com o Judiciário, a Polícia Civil e a sociedade civil, o projeto recuperou smartphones recolhidos na Penitenciária Modulada Estadual de Osório. Na época, o investimento foi de cerca de R$ 5 mil, vindos da conta de penas alternativas da Vara de Execuções Criminais de Osório. O valor garantiu o reparo dos aparelhos e a compra dos chips com internet por 30 dias, tarefa desenvolvida pelo Projeto Social Dejone Rambor, da Associação de Jiu-jítsu de Tramandaí, que se engajou nos trabalhos.
Por ser inspiração, a escola de Maquiné foi a primeira a receber 20 aparelhos.
— Nós temos famílias muito carentes e isso veio a beneficiar os nossos alunos, que ficaram muito contentes — recorda a diretora da instituição, Fabiane Dacol Machado.
Mãe do estudante Davi da Silva Dias, 10 anos, aluno do quarto ano do Ensino Fundamental, Josemari Cardoso da Silva afirma que as doações para a instituição facilitaram a vida do filho e dos colegas dele:
— Tínhamos apenas um celular na nossa casa, que era usado para trabalho. Meu filho não poderia fazer os temas. A entrega do celular foi importante para o aprendizado dele porque, assim, não foi preciso parar os estudos.
Hoje, aluna do quinto ano do Ensino Fundamental, Eloisa Staudt Florentino, 11 anos, estava no terceiro quando ganhou um dos celulares.
— Ele já me ajudou bastante porque conseguia fazer os meus temas, acompanhar as aulas e os meus colegas — conta a menina.
Segunda fase
Em janeiro de 2021, o Ministério Público gaúcho atribuiu caráter institucional ao projeto e o procurador-geral de Justiça designou o promotor Fernando Andrade Alves como gerente da ação. Um Termo de Cooperação foi assinado com a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) para que a instituição de ensino se tornasse responsável pela recuperação dos aparelhos em Porto Alegre. Outras três universidades - Universidade Regional Integrada (URI), a Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí) e a Universidade de Passo Fundo (UPF) - aderiram também para atuarem na parte de recuperação dos aparelhos nas suas regiões.
Nesta etapa, o Foro Central de Porto Alegre juntou-se à ação, encaminhando remessa de smartphones de delegacias de polícia de Porto Alegre. Segundo o promotor Fernando, pelo menos 4.543 smartphones foram recolhidos na fase dois do Alquimia II, com a participação de 27 promotorias de Justiça do Estado.
Recuperação
Na Capital, quando chegam ao Laboratório de Projetos em Engenharia da Escola Politécnica, da PUCRS, os smartphones passam por uma avaliação criteriosa dos técnicos com formação em eletrônica, mecânica e informática.
De acordo com o professor Anderson Terroso, que coordena o projeto na instituição, o aproveitamento dos aparelhos recolhidos nas penitenciárias gaúchas e entregues à PUCRS fica entre 30% e 40%. No total dos aparelhos recolhidos pelo projeto, apenas 20% acabam sendo aproveitados porque alguns são muito antigos e outros, são danificados pelos detentos quando percebidas as ações policiais.
— Hoje, recebemos cerca de 200 celulares por semana. E as entregas dependem da qualidade dos equipamentos. Mas podemos atender até 1,5 mil celulares por mês — destaca Terroso.
Na triagem, os profissionais fazem desde a reinstalação do sistema operacional à troca de peças entre aparelhos. Finalizado o primeiro momento, os celulares são higienizados e têm avaliação da bateria. Na sequência, passam pela formatação, verificação de dados e inclusão de aplicativos, antes de retornarem ao Ministério Público para serem entregues nas escolas. Cada celular costuma ser restaurado em até cinco dias.
O trabalho dos técnicos da PUCRS permite que escolas como a EMEF Nossa Senhora das Dores, de Tramandaí, se tornasse uma das contempladas pelo projeto pela primeira vez. No mês de agosto, a instituição recebeu uma remessa de 20 celulares recuperados.
Ainda que estejam em aulas presenciais, os estudantes da escola municipal poderão utilizar a nova ferramenta em atividades propostas pela escola. De acordo com o diretor Ivan Gayer, os equipamentos somarão à vida dos alunos.
— Direcionamos para quem, realmente, não tem celular. Durante o período de pandemia, percebemos a dificuldade de conexão para assistirem uma aula remota síncrona, por não terem equipamento disponível em casa. A maioria das famílias possuem um único aparelho. Hoje, há uma grande quantidade de recursos digitais para os estudantes aprenderem por meio da tecnologia, de uma ferramenta digital. Então, o celular ajudará pedagogicamente no crescimento deles — sustenta o diretor.
Terceira fase
Ao completar dois anos de existência, o Alquimia II chegou no que o MP considera a terceira fase da ação, numa articulação interinstitucional. Um novo Termo de Cooperação está sendo avaliado para estabelecer fluxos de smartphones entre o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, Tribunal de Justiça, a Secretaria de Segurança Pública do Estado, a Superintendência dos Serviços Penitenciários, a Polícia Civil e a PUCRS. Isso permitirá que passem pelo Alquimia II todos os telefones apreendidos em ações policiais que não possam ser restituídos e que não interessem a investigações em curso no sistema de Justiça do Rio Grande do Sul.
— A consolidação em âmbito estadual elimina custos logísticos importantes para a destinação final dos equipamentos pelo sistema de Justiça, reduz os impactos ambientais, a partir do adequado descarte do lixo eletrônico, e permitirá a inclusão digital de pessoas em situação de vulnerabilidade social que estão hoje em diferentes instituições. O projeto não é mais de Osório, é do Estado inteiro — celebra o idealizador do projeto, o promotor Fernando.
Com o sucesso da iniciativa, o Alquimia II foi apresentado ao Conselho Nacional de Justiça e ao Ministério Público Brasileiro, por meio da Unidade Nacional de Capacitação do Conselho Nacional do Ministério Público. A ação gaúcha serviu de inspiração para o Ministério Público do Mato Grosso do Sul, onde recebeu o nome de Projeto Transforme.