Os estudantes da Educação de Jovens Adultos (EJA) são, em geral, reclusos dentro da escola. Não gostam muito de falar, ficam receosos de participar mais diretamente da aula, responder ao professor. Sentem-se inibidos no trato com funcionários da escola e com estranhos. Alguns, porque têm dificuldade para falar; outros, por insegurança: pensam que são, de alguma maneira, inferiores às outras pessoas.
O esforço dos professores que estão alfabetizando jovens e adultos é convencê-los de que podem, sim, aprender, crescer e conquistar seus objetivos. Outro problema, porém, é que esses estudantes, por vezes, sequer traçam objetivos. Para muitos, mesmo concluir quatro totalidades – equivalentes à soma dos Anos Iniciais e Finais – na EJA, em média uma por trimestre, garantindo a quem seguir os passos adequadamente o certificado de conclusão do Ensino Fundamental em um ano, parece uma meta distante.
– Os alunos da EJA têm outro olhar para os estudos. Buscam mais a solução de problemas do que o desenvolvimento de novas habilidades. E se incomodam caso o aprendizado demore. Por tudo isso, acabam tendo outras perspectivas. Então, precisamos desenvolver ensinamentos que vão muito além dos trabalhos em sala de aula – diz Otília Beatriz Gomes Freires, diretora da Escola Municipal de Ensino Fundamental Podalírio Inácio de Barcellos, de Alvorada, região metropolitana de Porto Alegre.
É com essa preocupação com um ensino bem feito, que converse com as realidades dos alunos e, ao mesmo tempo, os cobre e dê perspectivas de futuro a eles, que os educadores trabalham diariamente.
– Não é porque voltaram para a escola que vamos promover um “faz de conta”. Muito pelo contrário. Eles têm que sair bem preparados. E tudo tem que ser feito com gosto pelos educadores e também pelos gestores da educação – afirma Nadir Machado, secretária municipal de Educação de Alvorada.
Na Escola Podalírio, a reportagem de GaúchaZH reuniu-se com quatro alunos de uma mesma turma, da totalidade 2 (T2), que estão em processo de alfabetização, para conversar. Sentados na biblioteca, em uma mesa redonda, rodeados de livros que eles esperam em breve poder ler, o que se passou ao longo de algumas horas foi uma conversa franca, apesar do início tímido, em que cada um contou um pouco da sua história – o que os aproximou dos colegas e dos professores presentes.
Oportunidades assim são raras: dificilmente os alunos de EJA sentem-se à vontade ou encontram receptividade para falar sobre como chegaram até ali. Em comum, os quatro alunos – Carla, 27 anos, desempregada; Eines, 44 anos, autônoma; Luiz Carlos, 70 anos, aposentado; e Paulo Sérgio, 45 anos, autônomo – vêm de contextos muito diferentes. Algumas características, porém, são comuns a todos eles: dificuldades para aprender na infância, trabalho desde cedo, compromissos com a família.
– Eu tive muitos problemas nos primeiros anos. Estudei até a 3ª série. Tive que trocar bastante de escola, passei por problemas com meu padrasto. Saí do colégio com 12 anos. Voltei em 2009 para a EJA, mas ainda tenho dificuldade para escrever. Só agora, com o apoio do meu marido e meus dois filhos, que comecei a conseguir ler. E quero ir longe. Meu sonho, antes, era ser professora. Agora, quero ser médica – declara Carla Gonçalves Santini.
O maior incentivo atual vem do filho de oito anos, Marcos Henry, que, a exemplo de sua mãe, está aprendendo a ler e a escrever.
– Ele pedia: “Mãe, escreve aqui para mim!”. Mas descobriu que eu não sei. Também por isso resolvi aprender.
Eines da Silva Tatsch perdeu a mãe aos cinco anos. A mais nova entre seis irmãos, ela se viu perdida. Com um pai distante, foi criada pelas tias. Estudou até a 4ª série, também saindo da escola aos 12 anos. Ajudava em casa e, aos 16, começou a trabalhar. Depois casou, e vieram os filhos – o primeiro, quando tinha 23 anos; o segundo, aos 31 – e ela não encontrava mais disposição para estudar. Até que, incentivada por leituras da Bíblia, decidiu voltar.
– Quero terminar o Ensino Fundamental e o Médio, depois fazer um curso para ser cuidadora de idosos – revela, motivada.
Luiz Carlos Branco nasceu e cresceu no Interior. Trabalhou na roça, junto com os irmãos, ainda na infância, não passando do 2º ano do Ensino Fundamental. Quando, um pouco mais velho, decidiu voltar, sentiu-se totalmente desconectado da turma.
– Era um grandalhão no meio de um monte de crianças. Aquilo me deixava envergonhado – relembra.
Aos 18 anos, quando mudou-se para Porto Alegre, passou a trabalhar em uma variedade de funções, especialmente como pedreiro e ajudante de obras. Assim o tempo foi passando, e só alguns anos depois da aposentadoria Luiz Carlos decidiu retomar os estudos. Isso depois de um trágico incentivo: a morte do filho mais novo, aos 22 anos.
– Na escola, consigo ocupar minha cabeça. Não fico pensando bobagem. Em casa, fico desocupado. Aqui, me dou com Deus e todo o mundo.
Já Paulo Sérgio Carpes dos Santos encontra inspiração no pai, já falecido, para seguir em frente e avançar nos estudos. Muito ligado a ele, Paulo viu “o velho” ficar paraplégico após fraturar uma vértebra em uma partida de futebol. Um de 12 irmãos, Paulo deixou a escola aos 13 anos, na 6ª série.
Com a mãe cuidando do pai em tempo integral, ele e os irmãos foram trabalhar para sustentar a grande família: vendiam frutas, capinavam, limpavam, construíam. Quando ela morreu, há 15 anos, Paulo assumiu a tarefa até a morte do pai, em 2014. Separado e com dois filhos, voltou a estudar porque quer ser, para eles, a inspiração de força e resistência que foi seu pai.
– Estudando, a gente se sente gente. Se sente vivo. Não tem coisa melhor do que estarmos conversando aqui. Porque as palavras modificam. Elas transformam.
Por que a EJA
- A distorção idade-série é um fenômeno que tem início nos primeiros anos do Ensino Fundamental e se arrasta por toda a trajetória escolar. A conclusão é do estudo “Excelência com Equidade no Ensino Médio: a Dificuldade das Redes de Ensino de Darem um Suporte Efetivo às Escolas”, realizado pelo Instituto Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional (Iede) com apoio do Instituto Unibanco, Fundação Lemman e Itaú BBA. Conforme a pesquisa, há três momentos em que essa distorção é mais alta: no 3º e no 6º anos do Ensino Fundamental e no 1º ano do Ensino Médio. Esses pontos críticos coincidem com etapas de transição: o final do ciclo de alfabetização; a mudança da sala de aula unidocente para a multidocente; a transferência da gestão municipal para a estadual. Em alguns momentos, a taxa de distorção idade-série diminui à medida que a escolaridade avança. Por exemplo, nas escolas públicas de Ensino Médio, em 2017, a taxa era de 36% no 1º ano, 30% no 2º ano e 25% no 3º ano. Isso, no entanto, não quer dizer que os problemas estão sendo resolvidos. O que ocorre é que parte importante dos estudantes em atraso abandona a escola. Muitos desses alunos compõem a EJA.
- A EJA é implementada no Brasil por Estados e municípios e orientada pelo Ministério da Educação (MEC), que define suas diretrizes. Podem cursá-la estudantes a partir de 15 anos, sem o Ensino Fundamental completo, que declarem a intenção à prefeitura de seu município. As aulas costumam ser à noite.
- Prevista na meta 10 do Plano Nacional de Educação (PNE), a integração da EJA à educação profissional é uma das estratégias para tornar o aprendizado mais atraente. Por isso, as escolas oferecem aulas diversificadas, em que a conexão com o mercado de trabalho é incentivada. Em Alvorada, são oferecidas disciplinas como empreendedorismo, informática, operação de caixa e rotinas administrativas.