– São muitas histórias diferentes.
É como Karla Renée Machado define a Educação para Jovens Adultos (EJA), modalidade de ensino voltada para aqueles que, por alguma razão, não conseguiram concluir os estudos na idade adequada.
Karla Renée tem 49 anos de idade e há 20 atua como professora na EJA. Nesse período, ela conheceu e conviveu com muitas dessas histórias.
– A gente tem pessoas que deixaram de estudar porque não tiveram acesso; outras, porque tinham que trabalhar; alguns, por dificuldades psicológicas, transtornos. São muitos fatores. E eles trazem, cada um, o seu jeito. São outras realidades e, por isso, precisamos nos adaptar. Propor outras maneiras de ensinar.
Karla Renée já viu milhares de alunos entrarem e saírem de suas aulas. Alguns conseguem concluir o Ensino Fundamental, muitos seguem para aprender os conteúdos do Ensino Médio e, após obterem o certificado, até buscam uma graduação.
Outros tentam, param, retomam, desistem.
São jovens, a partir de 15 anos, que trabalham de maneira autônoma desde quando eram crianças e não conseguiram dar conta dos estudos ainda na infância. São adultos que tiveram de cumprir obrigações familiares desde muito cedo e não puderam conciliá-las com as aulas. São senhores e senhoras que, quando pequenos, repetiram uma, duas, três ou mais vezes os Anos Iniciais e passaram a sentirem-se envergonhados de dividir o espaço com alunos muito mais jovens.
Em uma mesma sala, a professora, que trabalha alfabetização com crianças pela manhã e com os adolescentes e adultos à noite, lida com os mais diversos perfis de estudantes. Avôs e avós, mães e pais, casados e solteiros, trabalhadores e desempregados. Que estão em busca da qualificação para conseguir um emprego, escrever mensagens para os amigos e familiares, ler uma receita de bolo. Pessoas que desejam apenas estudar para conseguir ler uma placa e escrever o próprio nome, ou que planejam ir muito além e entrar em uma faculdade ou em um curso profissionalizante.
– Eles chegam aqui desacreditados, por pessoas próximas e por eles mesmos. É um passo e tanto eles apenas decidirem se matricular e virem às aulas. Esses estudantes não sabem se são capazes porque ninguém apoia eles. Mas, quando se esforçam, veem o quanto podem ir longe – relata a professora, que há nove anos leciona na Escola Municipal de Ensino Fundamental Podalírio Inácio de Barcellos, em Alvorada, na Região Metropolitana de Porto Alegre.
O momento-chave do aprendizado, ela revela, é quando os alunos realmente aprendem a ler. A partir daí, um mundo novo se abre para eles:
– É quando veem que podem, sim, conseguir o que querem. Quando conseguem aprender a ler, além de isso ser, para nós, muito gratificante, para eles, é único. Já ouvi muitas histórias assim: “Eu ficava na parada, passava três ou quatro ônibus e eu não sabia se era aquele ônibus ou não, e tinha vergonha de perguntar”. É isso. É o recado endereçado ao seu nome que você precisa ler. Muitas vezes, eles chegam aqui sem saber ler a hora no relógio. Então, quando aprendem... É maravilhoso. É a parte melhor do nosso trabalho.
Professora já foi aluna da EJA
Karla Renée sabe bem como é viver essa realidade: a professora foi, ela própria, aluna da EJA. Seu jeito acolhedor, a voz tranquila e o sorriso fácil escondem uma história, como a de tantos alunos, difícil.
Ela deixou a escola cedo, aos 10 anos, quando estava no 3º ano do Ensino Fundamental. A mais velha de sete irmãos, precisava trabalhar para ajudar a família. Quando completou 18 anos, quis voltar a estudar. Terminou o Ensino Fundamental, mas não parou por aí. Fez o Ensino Médio e, aos 22 anos, ingressou na faculdade. Formou-se em Pedagogia aos 26 anos e logo ingressou na pós-graduação em Educação Infantil. Há duas décadas, leva essa experiência para a sala de aula, ensinando alunos que, como ela, precisaram abandonar a escola na infância.
– Eu também ouvia isso. “Mas tu não estudou antes, por que vai estudar agora? Com quem vai deixar tua filha?” Também vivenciei isso como aluna. E hoje percebo, como professora, que não muda muito. O meio onde eles estão incluídos não tem essa compreensão. Muitos vêm aqui para nos dizer que vão deixar de estudar porque não estão conseguindo cumprir com o trabalho.
Lecionando 40 horas semanais em dois municípios – metade em Alvorada e metade em Viamão, onde mora –, Karla Renée, que é mãe de uma mulher de 32 anos e avó de dois meninos, de oito e 10 anos, entende a realidade dos alunos, e adapta suas lições a ela.
– Aqui a gente tem esse olhar. Fazemos toda uma proposta diferenciada. Ligamos para eles para saber por que não estão vindo. Se ficaram doentes, se foram para a Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase). Damos mais prazo. É uma característica do professor da EJA: ele está aberto a fazer isso, até preparar um material separado para mandar onde o aluno estiver. E, assim, conseguimos ver que muitos voltam. É um olhar diferente da escola “normal”.
Quando questionada sobre o retorno que recebe dos alunos que ajuda a formar, Karla Renée declara-se “suspeita”. O sorriso continua lá, sempre aberto, mas os olhos lacrimejam. Ela emociona-se lembrando dos tantos agradecimentos que já recebeu, das muitas vidas que mudou.
– Para mim, o aluno tem que gostar de ti. Se não, não vai aprender. Ele tem que gostar da escola; se não, não vai voltar. Eu trabalho para vincular esses estudantes com o professor e com a escola. Então as relações são fortes. O retorno que eu tenho é muito bom. De eles voltarem e dizerem que estão estudando, o que estão fazendo – garante a professora, orgulhosa.
A busca constante de Karla Renée no seu dia a dia em sala de aula é mostrar para os alunos que eles podem mais:
– Eu não acho que precisamos preparar esses estudantes para trabalhar na obra, no supermercado. Não que seja um serviço menor, mas por que pensar pouco? Por que imaginar que um aluno da EJA vai, no máximo, trabalhar em um balcão de loja? Ele pode ser médico, advogado, professor. Pode ser o que quiser.
A grandeza de se importar
Em uma roda de conversa, os professores Otília Beatriz Gomes Freires, diretora da escola Podalírio; Fernando Mattos Fernandes, vice-diretor do turno da noite; e Ivo Luiz Saldanha, professor de educação física para alunos da EJA, comentam uma cena que haviam, dias antes, assistido na televisão. Nela, um educador tentava se aproximar de um estudante novo em uma escola de jovens e adultos. O aluno, porém, reage de maneira agressiva à tentativa de acolhimento, estranhando a atitude do professor.
– É bem assim que acontece. Principalmente com os estudantes mais jovens – descreve Fernando.
– É mesmo. Eles não estão habituados a ter pessoas que se importam – concorda Otília, ressentida.
A série a que os docentes se referiam é Segunda Chamada, transmitida pela Globo, com 11 episódios centrados na história de alunos desse universo. Os personagens, como na vida real, são os mais variados: uma transexual, uma mãe solteira, um motoboy desempregado, uma mulher idosa. Os dramas dos professores, que atravessam toda a temporada, são também bastante diversos e realistas. E a ficção, percebe-se ao conferir a rotina de turmas da EJA em escolas de verdade, se aproxima muito da realidade.
– As turmas são muito heterogêneas, o que torna ainda mais difícil o envolvimento do professor. Mas nós nos esforçamos. Perguntamos a eles como estão, queremos saber das dificuldades, tentamos ao máximo ajudar. Isso tem um impacto direto nos seus rendimentos na escola – declara o vice-diretor.
Fernando também tem conhecimento de causa. Filho de um militar do Exército, ainda na infância se viu trocando de cidade e de escola repetidas vezes. Não se acostumava bem a tantas mudanças. Repetiu o 4º, o 5º e, duas vezes, o 6º ano do Ensino Fundamental. Já mais velho do que os colegas, foi se desinteressando da tentativa de seguir com os estudos no tempo mais adequado. Até que, aos 18 anos, ingressou nas Forças Armadas e, lá, concluiu o Ensino Fundamental e o Médio e teve incentivo para cursar a graduação em Educação Física.
O professor conta que, quando fez a Educação de Jovens e Adultos, via muito mais pessoas jovens, como ele era então. Hoje, com 12 anos de experiência em frente às classes, verifica que é cada vez mais comum a presença de alunos mais velhos, que também têm tido despertada a vontade de concluir seus estudos – e cada vez mais se veem como capazes de conseguir isso.
O fenômeno foi diagnosticado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): no panorama educacional da população do Brasil intitulado Educação 2018, o instituto identificou que 29% dos estudantes da EJA do Ensino Fundamental têm 40 ou mais anos.
– Muitos são motivados pelo próprio empregador, pela possibilidade de promoção dentro da empresa em que trabalham. Outros, por se sentirem frustrados pelo fato de terem parado, e o que acaba motivando é o filho que chega com um caderno em casa e o pai não consegue dar auxílio, porque percebe que tem menos estudo que a criança. Vindo para a aula, ele vê uma possibilidade de poder auxiliar o filho dentro de casa, até como um incentivo – relata Fernando.
Mas há também quem não deseja mais do que ocupar a cabeça, agora que tem um tempo livre para se dedicar a outras atividades além do trabalho e da família. Seja para deixar os problemas de lado, por pura vontade de investir na educação ou até para minimizar transtornos psicológicos, têm sido mais comum, nos últimos anos, ver pessoas que, depois da aposentadoria e de ter uma família já criada, decidem voltar aos estudos.
– Há avôs e avós que resolveram retornar à escola para não ficarem sozinhos em casa. Pelo simples fato de se sentirem ativos, de ter alguma outra função. Tem nisso também uma questão de estar compartilhando um tempo com outras pessoas, de ter um convívio social – garante ele.
O professor sente-se orgulhoso de poder atender a públicos tão diferentes. E explica que ter passado por dificuldades semelhantes às de tantos alunos o aproxima deles. Incentiva, Fernando garante, todos, jovens, adultos e idosos, a seguirem adiante, a vencerem, como fez o ex-aluno da EJA que hoje dá aula para eles – e tem tanto a ensinar.
Contra o cansaço
O aluno que chega às 18h30min na escola e lá vai ficar até as 22h30min, todos os dias, geralmente vem de um dia cheio. Teve que cuidar dos pais, dos irmãos, dos filhos. Teve de trabalhar ou buscar um emprego. Está, claro, cansado. Imagine, então, a tarefa de quem tem que colocar esses alunos para se mexer.
Nós temos que nos dar conta da realidade de cada um e adaptar os ensinamentos a isso.
IVO LUIZ SALDANHA
Historiador e professor de Educação Física na EJA
Ivo Luiz Saldanha é formado em História mas, à noite, dá aulas de Educação Física para turmas da EJA. Vê o desgaste dos alunos e, diariamente, ouve reclamações quanto à rotina de exercícios. Tem quem goste das aulas e queira passar o tempo jogando futebol, mas a tarefa do professor, ele explica, é mais do que isso.
– Muitas vezes, eles têm resistência. Até porque, para vários, o próprio trabalho é uma atividade física: eles mexem com peso, fazem atividades braçais. Então nós temos que nos dar conta da realidade de cada um e adaptar os ensinamentos a isso.
Não é fácil – também para Ivo. O professor cumpre 60 horas semanais como funcionário municipal em Alvorada, todas em atividades dedicadas à docência. Envolve-se com o ensino de manhã, de tarde e de noite. Ainda assim, sente-se recompensado. Ele dá um exemplo claro do quanto, tendo noção do cotidiano dos alunos, consegue ser ainda mais importante para estes: certa vez, foi conversar com um estudante que reclamava muito de dores. Descobriu que ele passava o dia erguendo peso e não se alongava. Passou, individualmente, algumas orientações, sugerindo que preparasse o corpo para a atividade física. Não demorou, o aluno foi agradecê-lo – e tornou-se um dos mais ativos nas aulas de Educação Física.
Alguns números
- A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) garante o direito à educação de jovens e adultos. A EJA é destinada a quem não teve acesso ou continuidade de estudo no Ensino Fundamental ou Médio na idade adequada. Esses cursos têm especificidades próprias e podem ser realizados na etapa do Ensino Fundamental pelas pessoas com 15 anos ou mais e na etapa do Médio por aquelas com 18 anos ou mais. Em 2018, 831 mil pessoas frequentavam a EJA do Ensino Fundamental e 833 mil pessoas, a EJA do Ensino Médio.
- Dos estudantes da EJA do Ensino Fundamental, 51,4% eram homens e 73,7%, pessoas de cor preta ou parda. Já na EJA do Ensino Médio, a maioria era de mulheres (54,9%), mas o percentual de pessoas pretas ou pardas continuou alto, (65,7%). Em termos de idade, 48,5% dos estudantes da EJA do Ensino Fundamental tinham até 24 anos e 29% tinham 40 anos ou mais. Na EJA do Ensino Médio, o grupo mais novo concentrou 52% e o de 25 a 39 anos, 32,3%.