O Brasil praticamente não plantava aveia para alimentação humana e animal. Até três décadas atrás, precisava importar o grão. Hoje, o país é autossuficiente. A cultura ocupa cerca de 400 mil hectares, com uma produção anual próxima das 800 mil toneladas, rendendo centenas de milhões de reais aos produtores.
Essa revolução ocorreu graças ao trabalho realizado ao longo de quatro décadas por um grupo de pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), responsável por desenvolver sementes de aveia adequadas às condições brasileiras. As sementes da universidade chegaram a dominar 100% do mercado. Ainda hoje representam mais de 80% – atualmente também há sementes da Universidade de Passo Fundo (UPF) e do Instituto Agronômico do Paraná.
Esse exemplo ajuda a entender por que o meio científico e acadêmico brasileiro encontra-se tão assustado com os cortes promovidos pelo governo federal em bolsas de pesquisa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O trabalho realizado pelo programa de melhoramento genético de aveia da Faculdade de Agronomia da UFRGS foi e segue sendo realizado, em larga medida, por bolsistas das duas agências.
Sem o financiamento público, que em geral varia de R$ 400 a R$ 2,2 mil mensais por pesquisador, a aveia possivelmente continuaria pesando na balança comercial, os agricultores brasileiros estariam mais pobres e haveria menos empregos no campo. O caso ilustra o engano de pensar que uma bolsa significa apenas um benefício concedido a um indivíduo, para ele estudar às custas do erário. Trata-se de um investimento em ciência e tecnologia, que pode dar retorno social e econômico.
– O objetivo da bolsa é formar recursos humanos de alto nível, pessoas diferenciadas, importantes para a sociedade e para a economia. Mais do que isso, as bolsas valorizam cada vez mais trabalhos que tenham aderência a problemas enfrentados pela sociedade e que sejam potenciais contribuições para o desenvolvimento do país. Os bolsistas são a mão de obra dos laboratórios e dos grupos de pesquisa. As bolsas sustentam esses grupos e, nessa medida, são um elemento fundamental do crescimento da produção científica brasileira – afirma Abilio Baeta Neves, que dirigiu a Capes de 1995 a 2003 e de 2016 a 2018.
Baeta Neves afirma que o investimento no setor tem grande impacto para a população brasileira, mesmo que ela não tenha consciência disso. Entre os avanços que foram obtidos com a ajuda de gerações de bolsistas da Capes e do CNPq, ele cita o desenvolvimento do agronegócio brasileiro, a exploração do pré-sal e a formação de uma das indústrias aeronáuticas mais avançadas do mundo – três setores fundamentais para vitaminar o PIB nacional.
O desenvolvimento da cultura da aveia é um dos inúmeros exemplos da importância dos bolsistas para a expansão do agronegócio. O Brasil não tinha produção porque as sementes não estavam adaptadas às condições locais e a colheita colidia com o período de plantar soja. Em 1974, a UFRGS criou o programa de melhoramento genético. A trajetória do atual coordenador, Luiz Carlos Federizzi, ilustra o papel das bolsistas. Ele ingressou no programa em 1977, como aluno de mestrado, com bolsa do CNPq. No doutorado, com bolsa da Capes, foi para a Universidade de Califórnia em Davis (EUA), referência mundial em ciência agrárias. Atualmente, o professor tem uma bolsa de produtividade do CNPq.
– Fiquei quatro anos nos Estados Unidos, com a bolsa da Capes. Foi muito importante. Meu doutorado foi em genética, que era fundamental para o trabalho que estava fazendo na UFRGS. Trouxe muitos conhecimentos de lá – diz Federizzi.
Esses conhecimentos foram colocados em prática por meio do cruzamento de diferentes sementes de aveia do mundo todo, em busca de variedades que funcionassem bem no Brasil. Em 1982, o primeiro cultivar da UFRGS chegou ao mercado. Desde então, mais de 30 foram lançados, com aprimoramento cada vez maior – as sementes made in Rio Grande do Sul são cultivadas hoje não só no Brasil, mas também no Uruguai, na Argentina, nos Estados Unidos e na Índia.
Além de melhorar a produtividade (de 940 quilos para 2.840 quilos por hectare), as novas sementes foram adaptadas ao ritmo da produção brasileira. Foram feitas para serem semeadas em junho e serem colhidas em outubro, permitindo a rotação com a cultura de soja – o que anteriormente não era possível.
– Os cultivares que existiam antes só podiam ser colhidos em dezembro, o que significaria perder a época de plantar soja. Desenvolvemos materiais que entram certinho na janela da soja. Assim, o agricultor consegue fazer dinheiro também no inverno – afirma Federizzi.
A pesquisa não tem data para acabar. Na Estação Experimental Agronômica da UFRGS em Eldorado do Sul, na Região Metropolitana de Porto Alegre, o grupo do cientista mantém atualmente 10 mil canteiros com linhagens diferentes de aveia, que produzirão as sementes do futuro. São necessários 10 anos de melhoramentos genéticos e de testes antes de colocar uma semente no mercado.
– Vamos fazendo os cruzamentos no campo, manualmente. Às vezes falta alguma coisa, como resistência a uma determinada doença. Trazemos isso e cruzamos com material nosso. A semente tem de produzir bem para as condições brasileiras, deve apresentar qualidade para o processamento industrial e precisa ser de qualidade para o consumidor. Só lançamos cultivares com as características desejadas – diz o professor e pesquisador.
Ao longo dos anos, mais de 60 alunos passaram pelo programa, com bolsas de iniciação científica (R$ 400), de mestrado (R$ 1,5 mil) ou de doutorado (R$ 2,2 mil), tanto da Capes como da CNPq. A formação deles é feita com a mão na massa. Eles se dedicam ao estudo sobre as características genéticas que influenciam o desenvolvimento da planta de aveia – que acabam resultado em cultivares novos, cada vez melhores.
– Sem os bolsistas, a nossa pesquisa não seria a mesma coisa. São eles que nos ajudam a entender como a planta funciona. O investimento em bolsas é fundamental para o Brasil. Forma novos cientistas, que ajudam a melhorar o país – ressalta Federizzi, que tem no grupo hoje dois bolsistas de iniciação científica, dois de mestrado e três de doutorado.
MEC projeta mais verba em 2020
A Capes e o CNPq foram criados em 1951, logo depois da Segunda Guerra Mundial, a partir da concepção de que o Brasil precisaria induzir a produção de conhecimento como estratégia para promover o bem-estar das gerações futuras.
Essa crise que estamos vivendo, de cancela bolsa, não cancela bolsa, é um terrorismo que estão fazendo com os pesquisadores, que não têm ambiente psicológico para produzir.
MARCEL BURSZTYN
Economista, ex-presidente da Capes
A Capes estava voltada à formação de recursos humanos qualificados para atuar no meio acadêmico. O CNPq tinha como responsabilidade fomentar as ciências, por meio da pesquisa. Em comum, as duas agências trabalham na formação de pesquisadores.
A iniciativa deu resultado. Apesar de ter um sistema universitário jovem, na comparação com o da Europa ou dos Estados Unidos, o Brasil conseguiu entrar na lista dos 15 países com maior produção científica, passando de quase nada a 2% do volume de publicações em periódicos internacionais de referência.
Para um pesquisador chegar a esse patamar, no entanto, são necessários vários anos de esforços, e a dedicação exclusiva à pesquisa é considerada crucial. É aí que entram as bolsas.
Todas as possibilidades estão sendo estudadas para garantir o pleno funcionamento dos serviços prestados. A capes poderá alcançar R$ 4 bilhões de orçamento em 2020.
NOTA ENVIADA PELO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
– Não é possível desenvolver pesquisa sem desenvolver pesquisadores. Com essas bolsas, o Estado não está simplesmente pegando dinheiro e dando renda para o pesquisador, como forma de gerar emprego. É claro que está dando emprego, mas é um emprego que tem um efeito multiplicador enorme, porque a produção vai retornar para a sociedade como solução para problemas e como forma de melhorar a vida da população e das futuras gerações. Essa crise que estamos vivendo, de cancela bolsa, não cancela bolsa, é um terrorismo que estão fazendo com os pesquisadores, que não têm ambiente psicológico para produzir. Há um risco de darmos vários passos atrás. Pesquisa você não pode interromper, porque, quando retoma, não volta ao ponto onde estava. Você perde, fica para trás, os pesquisadores se dispersam. Ciência e tecnologia não é atividade de governo, é atividade de Estado. Nenhum governo pode ter a prerrogativa de descontinuar atividades que são de Estado. Esse é o grande erro que se está cometendo – defende o economista Marcel Bursztyn, que trabalhou no CNPq e foi presidente da Capes entre 2003 e 2004.
Neste ano, o Ministério da Educação suspendeu 8.378 bolsas da Capes (chegaram a ser 11,5 mil, mas parte delas foi descongelada depois). Tradicionalmente, os programas de pós-graduação têm uma cota para bolsistas. Quando um aluno termina o seu trabalho e deixa o grupo, a bolsa que ele recebia é repassada a outro pesquisador. A política do ministério tem sido a de considerar que, quando o período de pagamento a um bolsista chega ao fim, ao bolsa está ociosa. Ou seja, ela não é mais transferida a outra pessoa, o que tem como efeito reduzir o tamanho dos laboratórios.
Em resposta a questionamentos feitos por GaúchaZH, o MEC afirmou que “busca alternativas para recompor o orçamento de 2020”: “Todas as possibilidades estão sendo estudadas para garantir o pleno funcionamento dos serviços prestados. Para o ano que vem, temos garantidos R$ 3,08 bilhões (R$ 2,38 bilhões para pagamentos de bolsas), e ainda existe a possibilidade de inclusão de fontes adicionais. Por exemplo, emendas parlamentares. Há também uma possibilidade de aproveitar parte dos recursos da Petrobras e firmar parcerias com empresas. A Capes poderá alcançar o valor de R$ 4 bilhões em seu orçamento de 2020”, informou o ministério, por escrito.
No caso do CNPq, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações chegou a setembro sem orçamento para pagar seus 80 mil bolsistas nos meses restantes do ano. Em resposta a questionamento de GaúchaZH, a agência enviou uma nota ma qual diz que “tem se empenhado junto ao Ministério da Economia e à Casa Civil para resolver a situação orçamentária”.
O tamanho do investimento
- Entre Capes e CNPq, há quase 300 mil bolsas concedidas pelo governo federal, sendo pelo menos metade desse montante no âmbito do Ensino Superior e da pós-graduação.
- Estima-se que 45% dos 240 mil mestrandos e doutorandos do país sejam contemplados.
- Os gastos com esses pesquisadores, que já chegaram perto de R$ 6 bilhões em 2014, foram reduzidos a menos de R$ 4 bilhões em 2019.
- Neste ano, os cortes de orçamento levaram o Ministério da Educação (MEC) a suspender 8,3 mil bolsas.
- A situação para o ano que vem está indefinida – depende da “inclusão de fontes adicionais” ao financiamento da pasta, segundo o MEC.