No início da tarde desta sexta-feira (9), todos os milhares de alunos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) receberam, por e-mail, uma carta aberta assinada pelo reitor, Rui Vicente Oppermann, e pela vice-reitora, Jane Tutikian. No documento, a Reitoria da instituição se defende de críticas feitas pelos movimentos negros em relação à metodologia para avaliar se alunos aprovados por cotas no vestibular são considerados pretos, pardos ou indígenas.
O texto faz um panorama da polêmica enfrentada pela universidade desde o ano passado, quando recebeu do Coletivo Balanta uma lista com cerca de 400 estudantes que supostamente fraudavam as cotas, até a ocupação do prédio da Reitoria, iniciada na quarta-feira (7).
Reitor e vice-reitora lembram a criação, no ano passado, da Comissão Especial de Verificação, colegiado que analisou os nomes incluídos na lista do Balanta, para trazer a recomendação feita pelo Ministério Público Federal (MPF), em dezembro do ano passado, como respaldo para suas decisões.
À época, o MPF pediu que a verificação de universitários fosse suspensa até o esclarecimento de alguns pontos. Entre eles, a legitimidade de uma comissão criada para analisar alunos já matriculados, que prestaram o vestibular sem que o edital previsse avaliação de sua etnia ou raça, e a necessidade de a instituição de ensino estar aberta a receber documentos por quem entrasse com recurso.
A carta cita um ponto de divergência com os movimentos negros: a criação da Comissão Recursal, grupo responsável por analisar o recurso de aprovados no vestibular que tiveram sua autodeclaração étnico-racial negada pela UFRGS. Os militantes afirmam que o grupo foi criado em ato "unilateral" da Reitoria para enfraquecer a avaliação, supostamente para evitar o surgimento de processos judiciais (a avaliação dentro da instituição é na instância administrativa).
No texto, Oppermann e Jane dizem que seguiram regramento interno da universidade para que os recursos fossem analisados "em nível hierárquico superior e com membros não participantes da Comissão de Verificação, embora com a expertise necessária para fazer a análise documental".
A principal divergência, o aceite de documentos indicando que pais e avós de aprovados por cotas são negros, é justificada pela Reitoria sob o argumento de que "considerando o princípio do contraditório e ampla defesa, em instância recursal não cabe definir que documentos o interessado deve apresentar. A Comissão de Recursos tem a obrigação de examinar todos os elementos quanto à validade dos mesmos para a identificação fenotípica do recursante".
Opermann e Jane citam novamente o entendimento de que, na reunião de quarta-feira (7), anterior à ocupação da Reitoria, houve acordo entre todas as partes. "Ao final, os representantes identificados com os movimentos negros se comprometeram a levar as propostas da reunião para a apreciação dos coletivos. Nesse momento, fomos tomados de surpresa com vídeos mostrando a obstrução das portas do prédio da Reitoria por manifestantes".
Ao fim da carta, reitor e vice-reitora criticam a ocupação da Reitoria por impedir o trabalho de servidores, por atrapalhar a análise de documentos de alunos cotistas aprovados no último vestibular e colocá-los em risco de perder a matrícula, e por ameaçar a conservação das obras de arte expostas no prédio, "de valor intangível".
GaúchaZH consultou uma integrante do Coletivo Balanta, mas ela afirmou que o movimento não se manifestaria sobre o texto.
Confira a íntegra da carta:
Carta Aberta à Comunidade
O CONSUN da UFRGS decidiu instituir o processo de Verificação das Autodeclarações de candidatos do vestibular e SISU aprovados já a partir do ano de 2018 (Decisão 212/2017).
Em paralelo, a Administração da Universidade valeu-se dessa decisão para também fazer a verificação das autodeclarações de alunos denunciados por supostas fraudes pelo Movimento Balanta.
Os trabalhos da Comissão Especial de Verificação, instituída por portaria de designação da Reitoria, iniciou seus trabalhos e, quando da divulgação dos indeferimentos, ensejou um número crescente de processos administrativos em grau de recurso. O Ministério Público Federal (MPF), atento à questão, emitiu uma recomendação de suspensão de todo o processo até que se esclarecessem alguns pontos. Os principais pontos eram: a legitimidade da Comissão de Heteroidentificação para analisar alunos matriculados em anos anteriores; a instância recursal se dava na própria Comissão de Verificação, formada por examinadores que não tivessem participado da avaliação do interessado; a UFRGS deveria receber, por parte dos recursantes, qualquer documentação considerada por estes como evidência para o seu recurso, inclusive ascendência familiar até a geração de avós.
Após uma prolongada negociação com o MPF, o processo de averiguação das denúncias a partir de uma Verificação Fenotípica foi aceito.
Reposicionamos a Comissão Recursal de acordo inclusive com o regramento interno da Universidade, em nível hierárquico superior e com membros não participantes da Comissão de Verificação, embora com a expertise necessária para fazer a análise documental.
Entendemos que, considerando o princípio do contraditório e ampla defesa, em instância recursal não cabe definir que documentos o interessado deve apresentar. A Comissão de Recursos tem a obrigação de examinar todos os elementos quanto à validade dos mesmos para a identificação fenotípica do recursante.
Nesse meio tempo, foi necessário que os trabalhos da Comissão Permanente fossem iniciados para permitir o fluxo de matrículas dos candidatos aprovados no Vestibular e SISU de 2018. Dessa forma, a Comissão Especial, aquela que examinava a já referida denúncia de alunos matriculados antes de 2017, suspendeu seus trabalhos, uma vez que muitos de seus membros, por sua experiência, comporiam a Comissão Permanente.
Movimentos negros se manifestaram, utilizando os meios de comunicação, contrários a alguns pontos do processo de verificação, gerando um tensionamento que culminou com uma manchete de um jornal de que o Reitor da UFRGS teria demitido 13 servidores por não concordarem com o referido processo, quando, na verdade se tratava do afastamento, por vontade própria, de um número menor de membros da Comissão Permanente de Verificação. Esse fato não interrompeu as atividades regulares da Comissão.
Na segunda-feira passada, dia 05/03/2018, convidamos representantes do Movimento Negro Unificado para uma conversa, onde se teria a oportunidade de avaliar a situação, identificar divergências, e buscar caminhos que pudessem ser construídos em conjunto para garantir o que a UFRGS, por uma década, defende: cotas para quem tem direito. Dessa reunião, surgiram algumas propostas importantes em atenção às demandas formuladas pelos representantes do MNU presentes. Entre elas: o aumento no número de participantes da Comissão de Recursos, incluindo a representação discente; garantia de que a Comissão de Recursos consideraria na sua avaliação evidências da fenotípica do candidato e não de seus pais ou avós, que são apenas complementares.
Na sequência, realizamos uma reunião na quarta-feira, 07/03/2018, com a participação dos membros do MNU, da Comissão Permanente, da Comissão Recursal, inclusive com a presença daqueles que haviam se afastado da Comissão e que aceitaram nosso convite para participarem das discussões.
Depois de uma longa discussão, acordamos sobre o aumento do número de participantes incluindo representantes dos estudantes na Comissão Recursal. Também acordamos que a utilização dos dados devidamente documentados de pais e avós seriam considerados apenas em caso de dúvidas, sempre tendo a fenotípica do candidato como critério central. Além disso, acordamos que um grupo de trabalho será formado com o objetivo de buscar o aperfeiçoamento do processo para as avaliações futuras. Na sequência, e já ao final da reunião, um dos presentes apresentou uma proposta de portaria substitutiva. Foi ponderado pelo grupo que a mesma será considerada em futuras avaliações. Ao final, os representantes identificados com os movimentos negros se comprometeram a levar as propostas da reunião para a apreciação dos coletivos.
Nesse momento, fomos tomados de surpresa com vídeos mostrando a obstrução das portas do prédio da Reitoria por manifestantes. De imediato, instruímos o Coordenador de Segurança para que abrisse uma negociação com os representantes dos movimentos, a fim de assegurar o livre trânsito, impedir a invasão e obter um posicionamento sobre o que acabáramos de acordar na reunião. A resposta foi de que eles não iriam negociar. Ato contínuo, nos dirigimos até a entrada do prédio para motivar uma reunião, pois entendemos que um diálogo poderia evitar um processo de violência e agressão por parte dos manifestantes.
Depois de muito tempo, três pessoas se aproximaram do nosso grupo como representantes, sendo dois deles participantes da reunião da tarde. Ficou clara a decisão de não considerar os pontos acordados e, inclusive, novas demandas foram agregadas entre elas a revogação pura e simples da portaria 937/2018, o que implicaria um sério risco ao resultado do vestibular. A condição para liberar as portas, permitindo a saída dos servidores retidos no interior do prédio, era que eles invadissem a Reitoria. Os três se afastaram e não retornaram, portanto, naquele momento estavam encerradas as negociações.
Dessa forma, para o bem e proteção dos servidores retidos, já há mais de três horas no interior da Reitoria, conseguimos abrir as portas, com a consequente invasão. Tivemos ainda que lidar com a presença da Brigada Militar, supostamente chamada por alguém retido no interior da Reitoria. Os oficiais, atendendo à nossa solicitação para retirar-se, deixaram o campus.
No dia 08 de março, os invasores impediram e continuam impedindo o acesso à Reitoria, impossibilitando todas as atividades da Administração Central da Universidade. Estima-se que mais de 500 servidores estão sem o direito de trabalhar. Há potenciais riscos de prejuízos orçamentários, de pessoal tanto servidores como terceirizados, realização de aulas, eventos e reuniões.
É importante enfatizar, que todo o procedimento de ingresso de alunos cotistas na Universidade está prejudicado por esta invasão. Temos, neste momento, o risco de 800 candidatos em diversas situações de análise documental, inclusive cotistas, aprovados no Concurso Vestibular/2018 e SISU, ficarem sem matrícula e terem o semestre e o ano letivo perdido. Todo o processo de ingresso na Universidade destas centenas de alunos é impactado e impossibilitado por este movimento de invasão.
Acresce-se o fato de que há, neste momento, no saguão do prédio da Reitoria, a exposição "O Silêncio, o Tempo e a Voz" com obras raras e de valor intangível, tais como pinturas de Alice Soares e Alice Bruggemann. A exposição traz obras cujas temáticas suscitam questões sobre relações de gênero e também de raça. Para a UFRGS é impossível atribuir valor monetário para as obras expostas, uma vez que são parte de um acervo preservado ao longo de décadas e que, por isso, exige cuidados especiais, estando vulnerável a danos. Alerte-se que qualquer possível dano em qualquer das obras expostas significará um prejuízo incalculável para a cultura brasileira.
Esclarecemos à comunidade UFRGS que estamos envidando todos os esforços para que as atividades acadêmicas e administrativas prejudicadas por esta invasão sejam retomadas.
Por fim, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul reafirma seu compromisso com a Política de Ações Afirmativas