A Educação Infantil municipal de Porto Alegre é mais privada do que pública. Apesar de as vagas serem gratuitas, três em cada quatro alunos dessa etapa vinculados à rede em 2023 estavam matriculados em escolas particulares. A parceirização ou a compra dessas vagas acontecem quando há uma demanda superior à capacidade de atendimento das unidades do município. Ainda assim, 2024 iniciou com déficit de 7.540 vagas em creches e pré-escolas.
No total, 20.808 das 27.637 matrículas na Educação Infantil foram, no ano passado, em instituições privadas, filantrópicas, comunitárias ou confessionais, e não em espaços públicos. O número foi obtido pela reportagem de GZH por meio do site Dados Abertos POA.
Para oferecer essas vagas, a Secretaria Municipal de Educação (Smed) repassou R$ 224,5 milhões a 173 CNPJs de 215 escolas parceiras, conforme informações obtidas pela reportagem de GZH por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). Isso representa gasto de cerca de R$ 10,8 mil por aluno atendido por ano, ou R$ 900 por aluno por mês. Além da compra das vagas, houve 164 pagamentos para as instituições que, somados, chegam a R$ 11,2 milhões.
Das 215 escolas particulares cadastradas junto à Smed, a grande maioria (163) é comunitária. Outras 27 são comunitárias filantrópicas, 16 são confessionais filantrópicas, cinco são só filantrópicas e três são só confessionais, além de constar uma instituição privada sem especificação de categoria ou mantenedora.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022, 53,1% dos alunos matriculados nessa etapa na cidade estavam em escolas privadas, o que corresponde ao sexto maior índice entre as capitais brasileiras. Em nível estadual, 74,6% dos estudantes da Educação Infantil estão em creches e pré-escolas públicas, e 25,4% em particulares.
No livro “Monitoramento de políticas públicas de Educação Infantil: repercussões da matrícula obrigatória na pré-escola em municípios do Rio Grande do Sul”, publicado em 2022 pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), as pesquisadoras Ariete Brusius, Camila Daniel e Maria Luiza Rodrigues Flores fazem uma análise da realidade dessa etapa nos municípios de Alvorada, Canoas, Gravataí, Novo Hamburgo, Porto Alegre, São Leopoldo e Viamão. Na comparação entre 2010 e 2019, foi registrado um número semelhante de matrículas na rede municipal da Capital, de cerca de 2,1 mil, mas um aumento de quase 25% nas vagas em instituições sem fins lucrativos e de 27% em escolas com fins lucrativos.
A vendedora Kessy Barbosa Marino, 28 anos, conseguiu vaga para os dois filhos, Anthony, três anos, e Henrique, 11 meses, na Escola de Educação Infantil Vivi Reis, no bairro Restinga. Como o mais velho já frequentava a instituição, que é comunitária, assim que o mais novo nasceu, ela procurou fazer a matrícula. No entanto, como o nascimento ocorreu em março e as inscrições só iniciavam em outubro, precisou aguardar e pagar uma creche particular.
— Depois, eu soube que, se eu fosse até a Smed, no Centro, eu poderia conseguir a vaga antes, mas eu não sabia. Acho ruim que as inscrições pela internet sejam só em outubro, porque acaba não pegando crianças que nascem antes disso — avalia Kessy.
Sobre a estrutura da escola, não tem do que reclamar: gosta do atendimento e das atividades que Anthony conta realizar desde que entrou lá, com um ano. Para Henrique, que chegou a ter matrícula em outra instituição, houve uma desistência e, como o irmão estuda na Vivi Reis, a família teve prioridade. Os pais deixam os dois lá por volta das 7h30 e buscam às 18h20.
Costume antigo
A contratação de instituições pela prefeitura para receber alunos da Educação Infantil não é novidade em Porto Alegre – se tornou uma prática já nos anos 1990 e, desde então, foi gradualmente expandida. O motivo desse aumento foi um desequilíbrio: o município não ampliou a sua rede própria para absorver a maior demanda de acesso à etapa de ensino. Desde 2016, existe a obrigatoriedade de que crianças de quatro e cinco anos estejam matriculadas na pré-escola e, até 2024, ao menos 50% dos pequenos de zero até três anos estejam em creches.
O secretário municipal de Educação, José Paulo da Rosa, cita, ainda, que o governo do Estado parou de oferecer Educação Infantil e que, durante a pandemia, dificuldades econômicas levaram famílias que tinham os filhos em instituições privadas a buscarem vagas gratuitas.
— Uma série de fatores fez com que aumentasse sobremaneira essa procura por vagas na rede pública e, para a gente, construir escolas próprias é sempre um processo demorado. Então, a solução para resolver esse problema em menos tempo foi aumentar essa rede de escolas parceiras, o que o Ministério da Educação e o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) permitem — salienta.
A promessa de Rosa é zerar o déficit de vagas na Educação Infantil até 2025. Dos 7.540 pedidos de matrícula não atendidos até o início de 2024, em torno de 2,3 mil tinham previsão de ser sanados logo, com a compra de vagas em instituições privadas, boa parte delas por conta de acordo com a Defensoria Pública do Estado (DPE) e de casos judicializados. Outras 1,8 mil crianças seriam contempladas via parceria com novas organizações da sociedade civil (OSC) escolhidas em edital encerrado no final de janeiro e de um novo acordo junto à DPE.
Restaria, então, uma falta de aproximadamente 3,4 mil vagas. Para 2025 e 2026, há a previsão de criação de 1.750 vagas em 15 novas escolas da rede própria do município. Também deve ser ampliada a oferta nos colégios próprios já existentes.
— É possível resolver (esse déficit). A gente já tem algumas estratégias e teremos, agora, um período previsto de construção de mais escolas próprias, o que talvez não tenha sido feito nos últimos anos. Talvez a maneira mais rápida (de abrir vagas) tenha sido fazer a parceirização, mas é importante ter uma rede própria consolidada — avalia o gestor.
Apesar de não achar necessário que todos os alunos atendidos pelo município estejam em escolas próprias da prefeitura, Rosa considera importante a consolidação de uma rede municipal que possua sua proposta pedagógica e sirva de referência para as parceirizadas.
— Nós podemos ter rede parcerizada, não vejo problema. Mas ter uma rede própria, consolidada, com uma boa proposta para que a gente possa, digamos, experimentar novas metodologias e, a partir daí, repassar para essa rede parcerizada, eu acho que é bom para todo mundo — observa o secretário.
Um desafio é oferecer atendimento em bairros onde não há instituições privadas para se comprar vagas, como no Extremo-Sul da cidade. Esses locais serão priorizados na hora de escolher onde serão construídas novas escolas municipais.
Há duas modalidades de vínculos desses colégios com a Smed:
- A primeira, e mais numerosa, é a de credenciamento, voltado exclusivamente a organizações sem fins lucrativos, que se inscrevem em editais abertos pela prefeitura.
- A segunda é para escolas privadas com fins lucrativos, nas quais o município compra vagas para atender demandas judicializadas. Esse formato é mais oneroso e apresenta uma desvantagem: a vaga comprada não é reconhecida no Censo Escolar feito pelo Ministério da Educação e, portanto, não é contabilizada na hora de calcular os repasses a serem feitos pelo governo federal. Isso faz com que seja um instrumento de pressão para que as prefeituras regularizem a situação e diminuam as demandas judicializadas.
Judicialização
Dirigente do Núcleo de Defesa da Criança e do Adolescente, a defensora pública Andreia Paz Rodrigues relata que, após a pandemia, a demanda pela busca de vagas na Educação Infantil junto à Defensoria Pública do Estado aumentou consideravelmente – se, em 2018 e 2019, foram atendidas cerca de 800 famílias por ano, em 2022 o número subiu para 1,4 mil. Para 2023, a estimativa é de que o atendimento também tenha crescido.
— Isso se deve muito em razão de as famílias terem mais conhecimento sobre seus direitos e onde procurar auxílio. A imprensa tem contribuído de forma significativa, além do fato de a DPE ter realizado vários mutirões de atendimento nos últimos anos voltados para a educação em direitos e para o atendimento jurídico nas regiões vulneráveis — pontua Andreia.
Se a judicialização, por meio de uma ação civil pública individual, leva em média três meses para assegurar o acesso da criança à matrícula na escola, com o pedido feito por intermédio da Defensoria Pública, via acordo extrajudicial, como acontece em Porto Alegre, a matrícula é feita em até duas semanas, segundo a defensora. Conforme Andreia, a falta de vagas acontece em todas as regiões da cidade, mas a demanda é um pouco maior em áreas mais vulneráveis, como Restinga, Chapéu do Sol, Mário Quintana, Timbaúva, Morro da Cruz e Rubem Berta.
Na Capital, têm direito a uma vaga em turno integral famílias que comprovarem que os responsáveis pela criança trabalham em ambos os turnos ou que demonstrarem situação de vulnerabilidade social. A renda familiar também é utilizada como critério para a concessão, na hipótese de vaga em creche. Geralmente, a obtenção da vaga é garantida, pois já há decisão do Supremo Tribunal Federal a Respeito, mas esses critérios precisam ser levados em consideração. Para acionar a DPE, o pai ou responsável deve procurar a Defensoria de sua comarca ou ligar, de segunda a sexta-feira, das 12h às 19h, para o telefone 129.
Riscos da parceirização
A professora Maria Luiza Rodrigues Flores, da Faculdade de Educação da UFRGS, coordena o Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Políticas Públicas de Educação Infantil, e tem percebido que, com a obrigatoriedade de universalizar o acesso à pré-escola para crianças de quatro e cinco anos, muitas redes públicas têm apostado em parcerias público-privadas (PPPs).
— Essa expansão vem acontecendo por ter um custo menor para os cofres públicos e por desobrigar os municípios a garantirem uma educação pública e de qualidade. Temos tratado a realização de PPPs como a política municipal de Porto Alegre para a expansão das vagas, porque tem havido um número muito inferior de construções de escolas públicas ou de ampliação de vagas em prédios públicos — analisa Maria Luiza.
A parceirização poderia, por lei, ser firmada em outras etapas, como o Fundamental e o Médio. No entanto, ela acontece mais na Educação Infantil. Para a pesquisadora, a realidade demonstra uma herança da época pré-Lei de Diretrizes e Bases da Educação, na qual esse nível não fazia parte da Educação Básica – era vinculado a áreas como serviço social e saúde.
— Se percebe que alguns lugares não têm claro o papel educacional e a dimensão pedagógica do atendimento da Educação Infantil. Hoje, sabemos que quanto mais nova a criança, mais importante o seu processo formativo e melhor deveria ser a formação dos profissionais que a atendem, porque temos um período de ouro, do zero aos três anos, no desenvolvimento infantil — ressalta a docente da UFRGS, que destaca que a qualidade do serviço oferecido nas escolas conveniadas varia muito.
Diretora da Associação dos Trabalhadores/as em Educação do Município de Porto Alegre (Atempa), Isabel Letícia Medeiros relata que há, por um lado, prédios de unidades comunitárias precários, localizados na periferia, e, por outro, vagas compradas para estudantes em situação de vulnerabilidade em instituições privadas de classe média. Essa situação pode gerar constrangimento para as crianças, que podem sofrer discriminação. Além disso, as instituições particulares não estão subordinadas pedagogicamente à prefeitura.
— Nas parceirizadas, ainda há algum debate com a Smed, porque essas escolas, para atenderem, precisam passar pelo crivo do Conselho Municipal de Educação. Nas privadas, nem isso acontece — observa a diretora da Atempa.
Maria Luiza afirma que as exigências para as parceirizadas são inferiores às previstas na rede própria: é cobrada a apresentação de um projeto pedagógico, condições mínimas de espaço físico, uma formação específica dos profissionais, mas sempre abaixo do que existe nas escolas municipais, construídas já com o fim de atender crianças.
— Na rede municipal de Porto Alegre, o nível de formação dos professores é muito alto. Já nas instituições parceiras, são contratados profissionais por CLT e nem sempre com o cargo de docente, mas em categorias de nível médio, auxiliares, atendentes de Educação Infantil e, portanto, com salários menores — cita a professora.
A Smed trabalha para resolver esse impasse. Até o ano passado, as OSC credenciadas contratavam profissionais com o cargo de “técnico de desenvolvimento infantil”, de Nível Médio, com salário de, aproximadamente, R$ 1,8 mil. Está sendo negociada a transição desses cargos para o de professores, com Formação de Nível Superior e salário inicial de R$ 3 mil. A mudança exige negociação porque demandará um reajuste no pagamento das parceirizadas.
Maria Luiza lembra que está sendo debatido o novo Plano Nacional de Educação, já que o atual expira em junho deste ano. Nenhuma das duas metas foi cumprida: nem a oferta de vagas a um mínimo de 50% dos bebês de zero a três anos e nem a universalização do acesso à pré-escola para os pequenos de quatro e cinco anos.