O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, assumirá em 1º de janeiro seu terceiro mandato com desafios na educação: a aprendizagem dos brasileiros piorou na pandemia, universidades estão à beira do colapso, políticas da área precisam de mais verba, mas o orçamento público está apertado.
Se as gestões anteriores de Lula foram marcadas por investimento em novas universidades e institutos federais no Interior do Brasil, além de bolsas no Ensino Superior privado, o teto de gastos deve trazer amarras. Os últimos bloqueios orçamentários impostos pelo Ministério da Economia de Jair Bolsonaro atingiram em cheio diversas autarquias federais – universidades sequer têm dinheiro para pagar contas de água e luz, enquanto centenas de bolsistas de mestrado e doutorado seguem com salários atrasados.
— A recomposição orçamentária é ponto de partida. Sem isso, tudo é só projeto, porque esbarramos nos cortes. Há gastos esperados no ano que vem para saldar compromissos deste ano. A questão da alimentação escolar é caso clássico de subfinanciamento, porque a inflação corrói os valores enviados pela União, mas Estados não podem deixar de dar comida, que é caríssima — diz o presidente do Conselho dos Secretários Estaduais da Educação (Consed) e secretário do Espírito Santo, Vitor de Angelo.
O orçamento do Ministério da Educação (MEC) previsto para o ano que vem, enviado pelo governo Bolsonaro para aprovação do Congresso, é de R$ 137,1 milhões, um pouco acima dos últimos dois anos, mas abaixo do destinado nas gestões Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB), segundo dados do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (Siop) do governo federal.
O teto de gastos, que limita os investimentos públicos ao crescimento da inflação, foi aprovado na gestão Temer. Todavia, já foi furado em diversas oportunidades e precisa ser discutido na próxima gestão, defende a vice-presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca) e professora de Política e Gestão da Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Nalú Farenzena.
— Do ponto de vista do financiamento da educação básica, o governo federal precisa financiar a rede pública federal. O segundo dever é prestar assistências técnica e financeira a Estados e municípios. Só que é preciso combinar responsabilidade social com responsabilidade fiscal. Quando a responsabilidade fiscal sobrepõe todo o espectro de políticas sociais, isso é inclusive obsoleto. O pacto federativo não supõe que todos os encargos de políticas sociais, com exceção da Previdência, recaiam sobre Estados e municípios — diz Nalú Farenzena.
PEC
Caso seja aprovada no Congresso, a PEC da Transição deve acrescentar mais R$ 12 bilhões na Educação, destacou o futuro vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) em coletiva de imprensa na quinta-feira (15). Em compromisso para a educação firmado com governadores, Alckmin destacou que Lula quer focar na educação básica e investir em expandir turno integral. Ainda citou a necessidade de erradicar o analfabetismo e universalizar creches.
Expandir o turno integral no Ensino Fundamental e Médio é importante para melhorar a qualidade do ensino e, neste momento, reforçar os conteúdos que não foram aprendidos durante a tentativa de aulas remotas da pandemia. No Brasil, só 12,4% dos alunos do Médio têm aulas em dois turnos – no Rio Grande do Sul, apenas 2,6%, segundo dados levantados pela ONG Todos pela Educação.
— Precisamos de um plano para o aluno ficar depois da aula e repor as aprendizagens que não teve nos últimos dois anos. Os alunos que precisam mais recuperar são os que não voltam depois. O MEC precisa coordenar essas ações, pode fazer isso com recursos, diretrizes, orientações e apoio a Estados e municípios. Além disso, o Brasil não pode ser um dos poucos países no mesmo nível de desenvolvimento com aulas de manhã, tarde ou noite. Deveríamos avançar mais rápido para educação em turno único, com 7h a 9h de aula, em uma educação mais mão na massa — diz Claudia Costin, diretora do Centro de Políticas Educacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), integrante da equipe de transição e diretora global de Educação do Banco Mundial.
Alckmin ainda afirmou a importância de reforçar duas políticas públicas importantes: o Programa Nacional da Alimentação Escolar (PNAE), que ajuda Estados e prefeituras a pagarem merenda, e o Programa Nacional do Transporte Escolar (PNAT), focado nos ônibus para estudantes. O futuro vice-presidente citou ser inadmissível o governo destinar R$ 0,36 por aluno para Estados e municípios pagarem alimentação estudantil – o valor sequer custeia um copo de leite. Para a população mais empobrecida, é a única refeição com carne do dia.
— Se conseguirmos ampliar creches, ajudar prefeituras e zerar a falta de vaga para crianças de quatro a cinco anos, daremos um salto espetacular. No Ensino Fundamental, tem a questão da merenda escolar. Não é possível R$ 0,36 por refeição. Há necessidade de corrigir esses valores, e a alimentação é prioritária, como também o transporte. Temos município brasileiro maior que países, o transporte escolar é importante. A escola de tempo integral, o presidente Lula tem avisado que vai priorizar a ampliação. Tem estudos mostrando que o aluno no segundo ciclo do Fundamental ou no Médio, quando se aumenta o turno integral, reduz o homicídio, se o jovem fica mais tempo na escola — afirmou Alckmin.
Metas
- Outras medidas importantes a serem tratadas pelo MEC
- Implementar o Sistema Nacional de Educação, o SUS da área
- Aumentar o valor de bolsas de mestrado (R$ 1,5 mil) e doutorado (R$ 2,2 mil), sem ajuste há nove anos
- Promover a inclusão digital de estudantes brasileiros
- Criar programas que ajudem Estados e municípios a fortalecer a carreira de professor
- Organizar o Plano Nacional do Livro Didático (PNLD), hoje com atraso
- Orientar Estados na aplicação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e no novo Ensino Médio
"Precisamos de recursos para creches", diz presidente da Famurs
No Rio Grande do Sul, 42% das crianças de zero a três anos tinham acesso à creche em 2019, taxa superior à média nacional (38%), segundo dados da ONG Todos pela Educação. Prefeituras sabem da importância de universalizar creches, mas o alto custo de aumentar vagas dificulta a expansão sem ajuda do MEC, alerta Paulinho Salerno, presidente da Federação das Associações dos Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs).
— Municípios têm a responsabilidade das vagas em creches, mas precisaremos de recursos. Hoje, o custo-aluno para uma creche em apenas um turno é de R$ 1,2 mil, mas só recebemos R$ 600. Há também a questão do transporte escolar, precisamos de renovação de frota e de reajuste no valor enviado por aluno. O transporte é fundamental para alunos que não são da área urbana das cidades e que precisam de transporte para se deslocar até a escola rural — diz o presidente da Famurs.
Após atritos entre o MEC na gestão de Jair Bolsonaro com governadores e prefeitos, será necessário unir esforços para resolver o fosso das desigualdades entre alunos de escolas públicas e privadas aprofundado pela pandemia, diz Priscila Cruz, presidente da ONG Todos pela Educação.
— A questão mais urgente é recompor o orçamento. Depois, tem a agenda dos cem primeiros dias. Precisa reconstruir a relação entre União, Estados e municípios, porque vivemos quatro anos de um governo federal que foi hostil com entes subnacionais. E há outras questões: havia na gestão PT e Michel Temer um programa de fomento para expansão da educação integral, que minguou nos últimos quatro anos até desaparecer. Precisa ter apoio financeiro e técnico para esse tempo a mais que o aluno estudará para recuperar a aprendizagem que não teve nos anos anteriores — diz Cruz.
"Vivo à base de arroz, feijão, banana e salsicha", revela bolsista
Hoje com menos verbas, universidades e institutos federais atrasam contas e estudantes ficam sem pagamento de bolsas. O cenário afeta a vida de bolsistas que são pagos com orçamento das universidades. Na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), cerca de cem estudantes estão com salário atrasado desde a primeira semana de dezembro, após o MEC limpar o caixa das instituições federais.
Os valores foram garantidos para quem recebe pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), mas não por quem é pago com dinheiro próprio da universidade. Um dos atingidos é o curitibano Felipe de Gouveia, de 24 anos, aluno do mestrado em Biociências da UFCSPA. Ele estuda uma enzima digestiva para melhorar a saúde de animais de corte, o que pode aumentar a qualidade da carne e evitar perdas a produtores. Com bolsa de R$ 1,5 mil mensais, o jovem paga quarto em pensionato, alimentação e transporte.
Além de ser baixo, o valor não foi depositado no quinto dia útil de dezembro, devido aos bloqueios do Ministério da Economia. Com o atraso e o vencimento das faturas de aluguel e cartão de crédito quase vencendo, Felipe foi salvo por um gesto de compaixão de sua orientadora de pesquisa, que emprestou R$ 1,2 mil a seu pupilo.
— O Felipe se manteve na graduação com bastante dificuldade e hoje se mantém basicamente com a bolsa. Depositei o valor da bolsa porque ele tem de pagar aluguel, ele tem de comer. Tenho bastante preocupação com ele. O Felipe está no laboratório trabalhando, conheço ele há cinco anos e ele mais do que merece. Ele não está estudando, está desenvolvendo pesquisa relevante — diz a professora de Farmacociências Tanira Aguirre.
Felipe, que é químico medicinal, economiza onde pode. Ele não come como gostaria.
— Vivo à base de arroz, feijão, banana e salsicha. Consigo dar uma improvisada de vez em quando. Às vezes, nem verdura dá pra comprar, de tão caras que as coisas estão. Lazer é basicamente zero, só quando é de graça na casa de amigo. Carne nunca nem vi. Até gosto de salsicha, mas faz mal pra saúde, sei que não deveria depender disso. Vou para as aulas a pé, senão seria R$ 10 por dia — resume o jovem.
Cofres raspados nas universidades, segundo reitores
Após bloqueios de verba no fim deste ano, as universidades federais, onde 90% da ciência brasileira é produzida, estão com cofres raspados, segundo reitores. Em 2022, o orçamento previsto para as universidades federais, antes dos bloqueios, era de R$ 5,2 bilhões, cerca de meio bilhão a menos do que no ano anterior, segundo dados da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) corrigidos pela inflação.
As universidades federais perderam mais de 50% do valor do nosso orçamento de 2016 para cá. Nosso orçamento hoje é metade do que era 7 anos atrás. Isso inviabiliza o funcionamento das instituições, que precisam ser resgatadas
RICARDO MARCELO FONSECA
Presidente da Andifes
O menor repasse atrasa a inauguração de um laboratório de alto nível de biossegurança no Instituto de Ciências Básicas da Saúde (ICBS) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O local está em construção para pesquisas com vírus e bactérias em animais vivos, o que ajudará a desenvolver novos remédios e vacinas. O atraso traz impactos concretos, como atrapalhar pesquisas científicas.
Uma delas é um estudo de Carlos Alexandre Netto, professor dos Programas de Pós-Graduação em Neurociências, Bioquímica e Fisiologia, sobre covid longa – quando indivíduos se recuperam da infecção pelo vírus, mas seguem com sequelas, como problemas de memória, equilíbrio, olfato e paladar. O estudo previa infectar ratinhos com covid-19 e identificar o efeito no cérebro, mas, sem o laboratório, Netto mudou a análise.
— Precisamos de um laboratório de biossegurança. Tínhamos a perspectiva de que o ICBS teria o laboratório montado até fim do ano passado, depois metade desse ano. Tivemos que mudar a pesquisa e trabalhar com cultura de células nervosas, já que não podemos usar o vírus, que é material infectante. Faz muita diferença. Quando trabalho com as partes de um sistema, não enxergo o efeito global daquilo no indivíduo. É que nem desmontar um carro e trabalhar só para a parte elétrica: o carro pode continuar sem funcionar porque o problema está na interface entre o elétrico e o mecânico. Ninguém sabe direito por que a resposta inflamatória da covid continua nem quais células estão envolvidas. É isso que nosso projeto, quando puder ser realizado, tentará verificar em animais — afirma o pesquisador.
Presidente da Andifes e reitor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Ricardo Marcelo Fonseca diz que as universidades entrarão 2023 com contas deste ano em aberto e que a recomposição de verbas é urgente. Lembra, ainda, que Japão, Coreia do Sul e outros países investiram em ciência e tecnologia para vencer crises econômicas.
— As universidades federais perderam mais de 50% do valor do nosso orçamento de 2016 para cá. Nosso orçamento hoje é metade do que era 7 anos atrás. Isso inviabiliza o funcionamento das instituições, que precisam ser resgatadas. Foram sendo sucateadas por maus-tratos orçamentários contínuos, forma cruel e lenta de esmagar as instituições. Orçamento é pré-condição para não ter evasão, com bolsas assistenciais para os mais pobres, porque, desde a lei de cotas, as federais não são mais instituições de elite. Nesses últimos anos, a população empobreceu. Queremos nos envolver, com nossos cérebros e nossa capacidade de reflexão, para ajudar o Brasil — diz Fonseca, em tom de apelo.
Posicionamentos
O que diz o Ministério da Economia
Desde 30 de novembro, quando cortou R$ 5,72 bilhões nos gastos do governo federal, a pasta vem dizendo que o objetivo é cumprir o teto de gastos neste fim de ano. E argumenta que as despesas cresceram além do esperado em 2022, em especial na Previdência Social. “Para cumprir o dispositivo constitucional do teto, o Ministério da Economia foi obrigado a promover bloqueio adicional nos limites orçamentários e financeiros de todos os ministérios. Com isso, despesas importantes que seriam realizadas neste ano ou no começo de 2023 não poderão mais ser empenhadas e praticamente todas as despesas discricionárias que seriam pagas em dezembro estão suspensas”, informou o ministério chefiado por Paulo Guedes, no fim de novembro.
O que diz a Capes
Sobre o pagamento de bolsas, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) informou neste mês que “defenderá sempre a regularização dos pagamentos devidos aos alunos e pesquisadores”.