Nesta sexta-feira (9) que marcará nove dias após o Ministério da Economia cortar R$ 5,72 bilhões no orçamento do governo federal, a estudante de doutorado em Fisiologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Vanise Pereira de Medeiros, 36 anos, lidará com um amargo problema: a fatura do cartão de crédito vence, mas ela não terá como pagar.
A bióloga é uma entre 200 mil pesquisadores de mestrado e doutorado que não receberam o salário na quarta-feira (7) devido aos bloqueios orçamentários no governo federal para cumprir o teto de gastos, segundo dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), agência de fomento à ciência. A instituição não informou o número de afetados no Rio Grande do Sul.
— O valor que a gente recebe por mês da bolsa no doutorado é de R$ 2,2 mil. Com esse valor, pago aluguel e todas as despesas de alimentação, condução, remédio, sobrevivência. Não temos fim de semana, não temos feriado, não temos férias remuneradas, não temos 13º, não temos FGTS, não temos INSS, não temos passagem de ônibus. Meu cartão de crédito vence amanhã, não vou conseguir pagar. Não tenho outra fonte de renda, nós assinamos um contrato de exclusividade, não podemos ter outro tipo de trabalho, nem vender brigadeiro na esquina. Na minha vida, eu não pagarei as contas neste mês. É triste — diz a pesquisadora.
A situação deverá ser revertida: após ampla repercussão negativa, o ministro da Educação, Victor Godoy, anunciou na tarde desta quinta-feira (8) que obteve, do Ministério da Economia, liberação de R$ 460 milhões. O valor será usado para assistência em moradia, transporte e alimentação de alunos de baixa renda, bolsas de permanência do Programa Universidade para Todos (ProUni), bolsas PET, bolsistas de pós-graduação da Capes, entre outros.
Vanise estuda as variantes da covid-19 em Porto Alegre e foi responsável, com colegas, por identificar o primeiro caso de Ômicron na capital gaúcha. Com a incerteza de pagamento, sente-se desvalorizada.
— Tudo que a gente se empenha, a gente não vê valorização por parte do governo. Com a defasagem do valor, está bem complicado sobreviver. As pessoas perguntam por que estou nessa área. É a única forma de fazer pesquisa no Brasil, precisamos passar por mestrado e doutorado. Mas sinto vontade de desistir - diz Vanise.
O corte de R$ 5,72 bilhões foi definido pelo Ministério da Economia, mas cada pasta decide onde a redução será feita. Pressionado, o governo publicará nesta semana portaria liberando R$ 3,3 bilhões para despesas não obrigatórias em várias áreas. Desses valores, R$ 300 milhões foram para o MEC — nesta quinta, o valor liberado subiu para R$ 460 milhões.
O Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e o Grupo Hospitalar Conceição (GHC) também sofreram cortes, de R$ 35,4 milhões. Um protesto de residentes na manhã desta quinta-feira (8) manifestou indignação contra a medida, uma vez que ficarão sem salário. Um dos afetados é o farmacêutico Gabriel Chiomento da Motta, 27 anos, que recebe bolsa de R$ 4,1 por mês.
— Não tendo dinheiro, não tem como pagar aluguel, internet, telefone e gastos do dia a dia. Nenhuma pessoa quer trabalhar para não receber salário. Não tenho quem pague o aluguel por mim. Tenho família, mas ela não consegue pagar aluguel e custo de alimentação. É chocante: num dia tá tudo certo, mas no próximo tu pode não receber nada — afirma Motta.
A Associação Nacional dos Pós-Graduandos (ANPG) convocou todos os bolsistas de pesquisa do país a paralisar as atividades nesta quinta-feira. “São milhares de jovens pesquisadores que têm sua sobrevivência ameaçada concretamente pela quebra de contrato ao não serem pagos por seu trabalho produzindo ciência no país. Estamos falando de milhares de jovens, o qual possuem como única renda as bolsas de estudos”, diz a entidade, em nota.
É o caso da doutoranda em Biociências na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) Helena de Castro e Glória, 32 anos, que estuda células cancerígenas desde o primeiro ano da graduação em Biomedicina.
Ser pesquisador no Brasil é difícil, estamos há nove anos sem reajuste nos valores das bolsas, a gente faz muito com pouco dinheiro, mas o problema é que tiraram o pouco que a gente tinha
HELENA DE CASTRO E GLÓRIA
Doutoranda em Biociências na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre
Neste ano, foi selecionada pela Capes para um período de estudos na França. Em novembro, deveria ter recebido cerca de R$ 5 mil para pagamento das passagens aéreas e custos de instalação, mas ainda não viu o dinheiro pingar na conta. Tampouco recebeu o salário de novembro, que deveria ter caído nesta semana.
Sob risco de perder a vaga no Exterior, ela recebeu dinheiro emprestado de sua orientadora para passagens, seguro-saúde e primeiro mês de aluguel. Nesta quinta-feira, Helena embarcou a Toulouse para assegurar a continuidade da pesquisa. Levará na mala 140 amostras a serem analisadas e dinheiro para sobreviver, no máximo, um mês e meio. Aguarda apreensiva que o dinheiro seja depositado.
— Não recebi a bolsa para ir para lá e deixei de receber a bolsa do que trabalhei em novembro aqui no Brasil. É uma situação assustadora, não sei quanto tempo levará para o dinheiro liberar. Ser pesquisador no Brasil é difícil, estamos há nove anos sem reajuste nos valores das bolsas, a gente faz muito com pouco dinheiro, mas o problema é que tiraram o pouco que a gente tinha — desabafa.
Orientadora de Helena há quase uma década, a professora de Bioquímica Jenifer Saffi, coordenadora do Laboratório de Genética Toxicológica, diz que a situação é frustrante, mas que quis ajudar a aluna porque, anos atrás, recebeu bolsas do governo para ser pesquisadora.
— A Helena está há 10 anos no meu grupo de pesquisa. Assim como fui ajudada quando era estudante, porque na época o governo honrava com as bolsas que se comprometia, eu também quis ajudar. Essa pesquisa pode de fato trazer resultados no tratamento contra o câncer. Vejo um descaso com a ciência e a educação que nunca vivenciei. Jamais vou deixar ela na mão, é a minha “filha científica”. O brasileiro acaba dando um jeito e cria uma rede de solidariedade, mas precisamos de investimento. Não dá para tirar a esperança, os jovens são nosso futuro. Vamos segurar essa onda — afirma a professora.
A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) não informou a GZH quantos alunos foram afetados, mas diz que “está em contato permanente com o Ministério da Educação e associações que representam as universidades, acompanhando assim todas as evoluções das questões do financiamento pública da educação”. Na UFCSPA, mais de 400 estudantes tiveram bolsas cortadas. A reitora Lucia Pellanda diz que alunos de pós-graduação são os grandes responsáveis pela produção de ciência brasileira.
— Esses bolsistas são as pessoas que, quando veio a pandemia, trabalharam de segunda a segunda, enfrentando um vírus desconhecido com muita coragem e dedicação para fazer pesquisa, campanha de conscientização e produzir álcool em gel. Chegar perto do Natal e retirar os recursos é muito cruel: eles têm dedicação exclusiva, não podem se dedicar a outras atividades que não seja ao projeto de pesquisa deles. Países que investem em educação e ciência têm a possibilidade de ter uma economia mais baseada em conhecimento e menos em produtos básicos — afirma.
A possível liberação de recursos fora antecipada pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), que representa reitores. A entidade se reuniu na quarta-feira com o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP-PI).
Segundo a Andifes, Nogueira afirmou que “surgiu uma luz no fim do túnel com a possibilidade de obtenção de recursos, após uma decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) autorizando a abertura de crédito extraordinário ao governo para cobrir o pagamento do Benefício de Prestação Continuada, do seguro-desemprego e de despesas judiciais”.
A Andifes ainda diz que há a possibilidade de universidades receberem verba oriunda da PEC da Transição, aprovada no Senado e que será apreciada pela Câmara dos Deputados na semana que vem.
O que diz o governo
O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) não retornou à reportagem. O MEC foi contatado, mas repassou questionamentos à Capes. A Capes informa que, após sofrer dois cortes do Ministério da Economia, foi surpreendida com a medida que “zerou por completo a autorização para desembolsos financeiros durante dezembro” para o pagamento dos mais de 200 mil bolsistas brasileiros pelos quais é responsável.
Na nota enviada à reportagem, a Capes ainda afirma que cobrou das autoridades competentes a imediata desobstrução dos recursos financeiros essenciais para o desempenho regular de suas funções, "sem o que a entidade e seus bolsistas já começam a sofrer severa asfixia”. Os pedidos ocorreram principalmente “para conferir tratamento digno à ciência e a seus pesquisadores”.
Na tarde de quinta-feira, a Capes afirmara que obteve R$ 50 milhões do MEC para pagamento de 100 mil bolsas dos Programas de Formação de Professores da Educação Básica referentes a dezembro.
Em nota divulgada à imprensa na segunda-feira (5), o Ministério da Economia afirma que precisou impor corte de R$ 5,72 bilhões nos gastos do governo federal para cumprir o teto de gastos neste fim de ano, uma vez que as despesas do governo cresceram além do esperado em 2022, em especial da Previdência Social.
Em novo posicionamento na quarta-feira (7), a pasta diz que “diante da execução orçamentária e financeira desafiadora já relatada neste fim de ano, segue acompanhando de perto as demandas dos diversos órgãos do Poder Executivo e trabalha para o atendimento desses pleitos, sempre respeitando o arcabouço fiscal. O Ministério da Economia reforça também que estão assegurados os pagamentos de todas as despesas obrigatórias que serão de fato executadas até o fim do exercício”.