Assoladas por uma crise financeira agravada pela evasão de alunos empobrecidos na pandemia, universidades privadas comunitárias do Rio Grande do Sul estão em articulação para convencer o governo do Estado a custear um programa de bolsas de estudo para universitários carentes, à semelhança do que ocorre em Santa Catarina.
A articulação é feita pelo Consórcio das Universidades Comunitárias Gaúchas (Comung), entidade que representa 14 grandes instituições comunitárias de Ensino Superior que são privadas, mas não visam ao lucro. Juntas, atendem a cerca de 190 mil estudantes e empregam 8,7 mil professores e 11 mil funcionários.
O grupo inclui Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Universidade do Vale dos Sinos (Unisinos), Universidade Feevale, Universidade de Passo Fundo (UPF), Universidade de Caxias do Sul (UCS), Universidade Católica de Pelotas (UCPel), Centro Universitário da Região da Campanha (Urcamp), Universidade Franciscana (UFN), Universidade de Cruz Alta (Unicruz), Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul (Unijuí), Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), Universidade UniLaSalle, Universidade do Vale do Taquari (Univates) e Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI).
As universidades almejam que o governo do Estado financie vagas para alunos carentes com o objetivo de evitar a evasão escolar de quem empobreceu na pandemia e abandonou os estudos — o que prejudicaria, a médio e longo prazos, o desenvolvimento de novos talentos e o crescimento da economia gaúcha.
O argumento é de que o Palácio Piratini descumpre o artigo 201 da Constituição Estadual do Rio Grande do Sul, segundo o qual o governo deve investir 0,5% da receita líquida de impostos no Ensino Superior público e, por meio de crédito educativo e bolsas de estudos, no Ensino Superior comunitário.
As universidades comunitárias, todavia, afirmam que jamais receberam recurso do Executivo gaúcho. O valor não aplicado em 2020 foi, segundo o Comung, de R$ 69 milhões, o que viabilizaria cerca de 7 mil vagas. A entidade criou, inclusive, a campanha #meioporcentojá nas redes sociais.
Reitora da Urcamp e presidente do Comung, Lia Quintana diz que as universidades comunitárias passam por crise financeira iniciada em 2015, com o esvaziamento do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies) pelo governo federal – cenário deteriorado com a evasão escolar durante a pandemia.
— Houve diminuição no número de alunos durante e após a pandemia, e esse aluno precisa ser assistido porque precisa estudar. Nossas instituições desenvolvem pesquisa e novas tecnologias. Oitenta por cento do atendimento à saúde pelo Estado é feito por hospitais filantrópicos. Nos reunimos com várias pessoas, incluindo o (ex-) governador Eduardo Leite (PSDB), e ele se mostrou aberto. Todos concordam, todos entendem legítimo. O diálogo está posto — afirma Lia.
A medida é inspirada em Santa Catarina, onde o Programa de Bolsas Universitárias de Santa Catarina (Uniedu), que existe desde a década de 1990, ganhou corpo na gestão do governador Carlos Moisés (Republicanos) e recebeu R$ 455 milhões apenas em 2022 – no ano passado, 53 mil alunos de graduação e pós-graduação foram beneficiados.
Proposta
Em meio à debandada de estudantes em cursos de licenciatura e o risco de apagão de professores, universidades comunitárias sugerem que o programa poderia bancar, primeiramente, vagas para futuros professores, com oferta de bolsas para auxílio-permanência - assim, o aluno não pagaria a mensalidade e ainda receberia ajuda de custo para estudar.
Uma vez expandido, o programa abrangeria todos os cursos, de acordo com as demandas de formação de cada região gaúcha - assim, universidades da Região Norte poderiam formar mais jovens para o agronegócio e os da Capital, para o mercado da tecnologia e da ciência de dados.
— Como há uma crise na licenciatura, seria interessante uma política pública colocar como alvo o desenvolvimento de professores. Mas, pensando no desenvolvimento do Estado, temos que pensar também nas carreiras tecnológicas e científicas com carência de profissionais no Rio Grande do Sul, como na área de programação. Talvez, em um primeiro momento, a prioridade pode ser nas carreiras de docentes, mas há outras frentes a serem atacadas para o desenvolvimento harmônico — diz o vice-reitor da Unisinos, Artur Jacobus.
Concorrência
Uma reclamação das universidades comunitárias é a concorrência com grandes grupos educacionais que controlam diversas faculdades focadas em cursos a distância com baixas mensalidades, o que atrai alunos com rendimentos corroídos.
Enquanto algumas universidades comunitárias gaúchas cobram mensalidades que variam de R$ 1 mil a R$ 9 mil, a depender do curso, faculdades com ensino remoto chegar a oferecer cursos por R$ 49,90.
Se universidades do Comung contam com 8,7 mil professores para ensinar 190 mil alunos, uma grande instituição de Ensino Superior conhecida por oferecer aulas gravadas a distância emprega 5,4 mil docentes para 462 mil estudantes, segundo levantamento da entidade com base em dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
A diferença, diz o Comung, é que as universidades comunitárias oferecem ensino de alta qualidade, parques tecnológicos, estágios, pós-graduação, pesquisa, extensão, hospitais e impactam diretamente a economia das regiões onde se localizam.
— O setor privado mercantil cresce vertiginosamente, o que traz um conjunto de preocupações sobre a qualidade do ensino. Com o crescimento dessas empresas de educação, instituições como as nossas, públicas não estatais, passam a viver um cenário de concorrência nunca antes experimentado. Essas empresas abrangem um público com mais dificuldades econômicas que ambiciona a educação superior, mas sem oferecer o que o estudante precisa para ter um aporte necessário para se desenvolver — afirma a reitora da UPF, Bernadete Maria Dalmolin.
Bernadete cita que, desde o esvaziamento do Fies em 2015, a UPF registrou uma redução de cerca de 45% no número de estudantes, “percentual semelhante a todo o sistema de universidades comunitárias”, segundo ela.
Arthur Jacobs, vice-reitor da Unisinos, diz que não se trata de demonizar o ensino a distância, mas de assegurar que os estudantes tenham acesso à educação de qualidade.
— Não é que o EAD seja um problema, as universidades comunitárias oferecem curso assim, que são muito bem avaliados. O problema é que as ofertas de alguns grandes grupos não é acompanhada e nem monitorada. Há uma oferta de EAD por um preço extremamente baixo, com baixa qualidade e quase nenhum controle estatal — diz.
Articulação política
Porta-vozes das universidades comunitárias já se reuniram com o ex-governador Eduardo Leite, com a secretária estadual da Educação, Raquel Teixeira, com o ex-presidente da Assembleia Legislativa Gabriel Souza, além de outros políticos.
A Comissão de Educação, Cultura, Desporto, Ciência e Tecnologia da Assembleia Legislativa foi acionada e solicitou informações sobre o tema ao governo do Estado. Uma audiência pública às 10h da próxima segunda-feira (20), na Universidade Feevale, ouvirá universidades e população.
Se a proposta prosperar, deputados podem abraçar a demanda e elaborar um projeto de lei (PL) ou solicitar que o governo do Estado aplique os 0,5% da receita líquida de impostos nas comunitárias já que cabe ao parlamento fiscalizar as ações do Executivo.
Presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs), Odir Dellagostin vê com bons olhos a iniciativa, mas destaca que o orçamento para isso depende de aprovação do Palácio Piratini.
Para dimensionar o impacto financeiro, ele exemplifica que o orçamento da Fapergs como um todo em 2022 é de R$ 85 milhões – apesar de ser o maior da história, representa apenas um quinto do aplicado pelo governo de Santa Catarina em bolsas neste ano.
— Certamente, precisa ser garantida a fonte de recursos para essa ação. Se houver vontade política, recursos podem ser mobilizados, e aí analisar a situação e procurar atender às demandas onde há carência de profissionais no Rio Grande do Sul, como licenciaturas, engenharias e ciências de dados. Daríamos oportunidade a pessoas que não teriam acesso ao Ensino Superior de outra forma. O objetivo não seria ajudar universidades, e sim formar pessoas — diz Dellagostin.
Contatado pela reportagem de GZH na terça-feira (14), o Palácio Piratini ainda não se manifestou sobre o assunto.