Tornar o acesso ao ambiente escolar algo democrático e universal é um grande passo que o sistema público de educação ainda precisa se propor. O tempo em casa acentuou a desigualdade entre quem tinha condições de acompanhar aulas em um espaço adequado e aqueles que só podiam acessar atividades impressas em alguns momentos, sem o acompanhamento adequado do professor.
Agora, com as escolas abertas ao ensino presencial novamente, estes dois alunos se reencontraram, com conhecimentos acumulados de maneiras diferentes. E, por conseguinte, não podem ser tratados como iguais.
— Os mais impactados são aqueles com menores condições financeiras, cerca de 40% dos estudantes da escola pública. Além do ensino remoto, eles sofreram com a perda de renda, o desemprego e a fome. Tinham que dividir um celular com várias pessoas da mesma família para assistir a aula. O tempo que vamos levar para recuperar esse aluno depende de como vamos propor o reencontro deles com a escola — avalia o doutor Gabriel Grabowski, professor e pesquisador da universidade Feevale.
Com tanto tempo em casa, os estudantes que retornam ao colégio têm uma ânsia: contar tudo que viveram neste período. E esse é o primeiro passo para que a volta ao ambiente escolar não seja traumática. É o que avalia Francisco Thiago, doutor na área da Educação e professor na Universidade de Brasília (UnB). Ele pontua a necessidade de que a escola vá além do pedagógico, trabalhando de maneira interdisciplinar com outras pontas que vão se costurar nessa nova escola:
— O diagnóstico de como esses alunos estão e o que nós vamos fazer para que o tempo em casa não tenha sido perdido vai surgir dessa recepção dele no retorno ao ambiente escolar.
Diretor da Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Theodoro Bogen, no bairro Niterói, em Canoas, o professor Douglas Perdomini conta que a pandemia aproximou os pais da escola. Muitos apareciam em reuniões virtuais para explicar que não tinham tempo de acompanhar o ensino dos filhos. As aulas remotas também precisaram ser deslocadas para o final do dia. Era o horário em que os pais estavam em casa e podiam emprestar os telefones aos filhos.
— Agora, essas crianças estão voltando para a escola com todo esse tempo sem a socialização que o ambiente proporciona — diz o diretor.
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Retorno dividido em fases
Sônia Maria de Oliveira, secretária municipal de Educação em Canoas, explica o modelo adotado pela cidade para receber os estudantes novamente em suas escolas:
— Estamos dividindo esse retorno em três pontas. Acolhimento dos alunos, com eles reaprendendo o que é estar no ambiente escolar presencial. O diagnóstico para saber quem retornou, através de avaliações online. E, por fim, o planejamento para que possamos atender as lacunas deixadas pelo tempo que esse estudante ficou em casa.
Em toda rede municipal da cidade, a terceira mais populosa do Estado, são 35 mil alunos. Deste total, cerca de 900 ainda estão afastados da escola. A secretária diz que o número segue a tendência de outros anos, mas que o município faz busca ativa para tentar reduzir a quantidade. Desde o início da pandemia, a busca ativa na cidade já fez com que 2.500 estudantes retornassem ao sistema.
— É um dos nossos grandes desafios, não perder aquele aluno que precisou largar a escola para ajudar os pais em casa durante a pandemia — diz Sônia.
Espaço híbrido e interdisciplinar
Um sala onde alunos atuam de maneira receptora, enquanto um professor dissemina seu conhecimento do topo para a base. Esse formato que permeia a escola há séculos da escola foi transformado. E a escola que surgirá com a pandemia agrega o aluno, o celular e as demais tecnologias. Esses itens são consequências dos modelos que emergiram com o isolamento. Antes, estudar sem ir ao local de aprendizagem era algo comum da educação à distância (EAD). Mas, é importante ressaltar que o ensino na pandemia não se tornou EAD. O termo correto é educação remota. A modalidade, comum em cenários de guerra ou desastres naturais, entrou no cotidiano com a pandemia. A ideia é replicar o modelo de sala de aula em um ambiente virtual. Todos separados, mas ainda juntos.
— Foi um desafio. No começo, confesso que não me sentia à vontade. Tinha o medo de falar alguma coisa e acabar virando meme (expressão usada para definir algo que viraliza na internet). Além disso, precisei me adaptar. Tinha um quadro em casa, mas os alunos não enxergavam nada do que eu escrevia nele por causa da luz que entrava na minha janela. Depois, fomos descobrindo as plataformas, as salas virtuais, o compartilhamento da tela. O professor precisou se reinventar — conta Andréa Freitas, docente de Matemática na Emef Theodoro Bogen.
Google nas escolas
Dos 504 alunos da instituição, cerca de 400 optaram pelo ensino presencial. A modalidade ainda não é obrigatória, quem quiser, pode seguir assistindo as aulas pelo computador. É o que forma o ensino híbrido. Esse, veio para ser algo definitivo, apontam especialistas e autoridades. Na mesma sala de aula, um professor explica os conteúdos para quem está distribuído nas carteiras e quem acessa por meio do Meet, plataforma de videoconferências do Google.
O gigante de pesquisas na internet, aliás, têm tido grande participação nesse retorno. Em Canoas, a prefeitura fez parceria para o programa Google na Sala de Aula, com formação dos professores, aquisição dos chromebooks e uso de plataformas do Google, como o Meet (para videoconferências) e o Classroom (para distribuição de conteúdos).
Ir na escola todo dia pode algo incomum nos próximos anos. Com o ensino híbrido, revezar dias de aula presencial e remota, ou dedicar períodos para outros projetos tende a tornar-se algo mais frequente. O professor da Feevale Gabriel Grabowski define a escola pós-pandemia como "um espaço público comum para educação". Não sendo só um espaço físico, mas com outros espaços nos quais ela deve atuar, como pesquisas em bibliotecas, museus, criação de projetos interdisciplinares.
— A escola era basicamente sala de aula. E tem que ir para fora disso, abraçar as áreas comuns de estudo e convivência, o que já é uma tendência em universidades, por exemplo. E precisa se pensar nisso dentro do nosso modelo de escola.
Pais optam por caminhos diferentes
A autônoma Angela Soares Kern, 40 anos, decidiu que o filho Pietro, 10 anos, ia permanecer estudando em casa, mesmo após o retorno das aulas na Emef Theodoro Bogen. Ainda com apenas uma dose da vacina e morando com pais idosos, Angela não quer que o filho tenha a chance de se contaminar e acabar levando a covid-19 para casa. Pietro tem um espaço adequado para a aprendizagem em casa, diferente de alunos que precisam usar o celular dos pais. Ele se acostumou com a educação remota e conta que consegue até se concentrar melhor.
— Na sala de aula eu converso muito quando estou junto com meus colegas. Só tenho problemas quando o despertador não toca — diverte-se o garoto.
A adolescente Mariana Ilha Delgau, 14 anos, por sua vez, ficou empolgada para o retorno escolar. A falta dos colegas do 9º ano (que estavam iniciando o 8º ano quando as aulas pararam), foi um dos pontos que mais lhe incomodaram. Mas, os percalços do reencontro também vão ficar marcados.
— A gente precisou se acostumar a estar sempre se máscara, evitar o contato com colegas. É uma realidade bem diferente de quando fomos para casa — pontua Mariana.