Por Caroline Pacievitch e Nilton Mullet Pereira
Docentes de História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
As imagens de jovens enfileirados e batendo continência em uma escola do Estado de Goiás que tenta estabelecer uma gestão compartilhada do espaço escolar com a Polícia Militar não é, de modo algum, algo que possa passar despercebido. Em verdade, essas imagens, se tiradas de seu contexto – uma escola pública estadual, do século 21, no centro-oeste do Brasil –, revelam momentos angustiantes da nossa história, que deixaram marcas muito profundas e cicatrizes ainda abertas na América Latina e no resto do mundo. Precisamos pensar que a disciplina militar, tão conhecida nos exércitos da Roma Antiga ou em qualquer organização militar do presente, constitui-se em uma ideologia, altamente formalizada e fundada na obediência à hierarquia. Ela é, portanto, estranha ao ambiente escolar, mais afeito à criação, à curiosidade, à proteção e, por que não, à rebeldia.
Em momentos de crise econômica e aumento da violência, soluções estranhas ao diálogo democrático e ao cumprimento das normas constitucionais se apresentam como modos rápidos para resolver os problemas. O desequilíbrio social, a descrença e a desesperança sempre foram, historicamente, combustíveis para soluções mágicas, para salvadores da pátria e, sobretudo, para um processo de fascistização da sociedade, que mobilizam o medo com respostas de senso comum que dificilmente resistem ao aprofundamento da discussão.
A universalização do acesso ao Ensino Básico incluiu jovens que chegam às escolas com urgências, problemas e questões desafiadoras, inclusive para as nossas práticas pedagógicas tradicionais. Esses desafios são enfrentados crítica e criativamente pelos professores que se esforçam por suprir uma infinidade de demandas deixadas nas escolas. São também objeto de estudo intenso de muitos investigadores, da Educação ou de outros campos. Entretanto, nenhuma das soluções encontradas no campo da pesquisa se parece, nem de longe, a submeter os jovens a rituais militares, a impedir suas manifestações e a tolher suas formas de expressão.
Sabemos que a escola é constituída de normas e é na escola que os estudantes aprendem a construir relações de convívio democrático. Mas essa aprendizagem da democracia não pode ser, paradoxalmente, imposta. Ao contrário, ela precisa deixar aparecerem as memórias, as rebeldias, as singularidades, os conflitos, de tal forma que a afirmação de si mesmo possa implicar o respeito ao outro.
Esse exercício é muito diferente do que se viu na reportagem sobre a escola em Goiás, em que o constrangimento, que é típico dessa forma disciplinar (uniformes, militares estabelecendo filas e mantendo a ordem) acaba por significar o abandono da curiosidade, do pensamento e da diferença em benefício do reconhecimento e da repetição. Além disso, a militarização parte da premissa de que o problema central das escolas é a falta de disciplina. Logo, se as crianças e jovens aprenderem a permanecerem retos e firmes na fila, amarrarem e/ou cortarem o cabelo e andarem em silêncio pelos corredores, terão melhor desempenho escolar. É desnecessário mencionar que essa premissa não se sustenta.
A escola, como instituição disciplinar que é, passou por modificações muito significativas na história. Agora, sua tendência é acolher ao invés de excluir; deixar os jovens se movimentarem nesse espaço que é protegido, pelos seus profissionais, para vivenciar o conflito, a contradição e o pensamento. E é no conflito, na contradição e no pensamento-ação que eles podem aprender a conviver com justiça e respeito, numa sociedade democrática, resistindo à tentação de pensar pouco, que leva a aderir a projetos perigosamente autoritários.
A solução da militarização exclui das escolas a criatividade, a curiosidade, a rebeldia e, sobretudo, uma quantidade imensa de jovens sem dúvida vistos como “desajustados” pelo “aparelho de Estado”. Trata-se, portanto, de uma estratégia de exclusão que, no fundo, incentiva ódio e intolerância. Ao mesmo tempo, significa o abandono da curiosidade e da diferença, em benefício da repetição e do silêncio que, no fundo, expressam um futuro sem pesquisa e um país sem futuro.
Enfim, lembramos que desde o início desse processo, no Estado de Goiás, entidades e organizações da sociedade civil, professores e professores – como Rafael Saddi, da Universidade Federal de Goiás –, fizeram e fazem forte oposição ao movimento de militarização das escolas.
Os autores deste artigo respeitam e não se voltam contra as organizações militares e de segurança; ao contrário, pensam que é preciso trabalhar em conjunto com elas para procurar soluções para a violência no entorno das escolas. O que escrevemos é mais um manifesto em favor da pluralidade, de uma escola sem a violência e também sem uma cultura da violência.