Ele liderou pesquisas que comprovaram o benefício da amamentação para o desenvolvimento da inteligência e a importância dos primeiros mil dias de vida de um bebê para a saúde na idade adulta. Seus estudos também serviram de base para a reformulação de programas e campanhas do Ministério da Saúde, em relação à morte súbita na infância, por exemplo.
Se os resultados, por si só, já evidenciam a relevância das suas investigações, agora se comprovam: o epidemiologista Cesar Victora, do Centro de Pesquisas Epidemiológicas da Universidade Federal de Pelotas (CPE/UFPel), está em primeiro lugar no ranking de cientistas brasileiros mais citados no Google Acadêmico.
O levantamento foi realizado pelo Laboratório de Cibermetria, do Conselho Superior de Investigações Científicas da Espanha, que analisou o volume e o impacto da produção científica de 33 mil pesquisadores de instituições do Brasil. Os dados coletados para formular esta lista, que abrange estudos de todas as áreas do conhecimento, são referentes a abril. Artigos científicos, teses, trabalhos acadêmicos e sites de pesquisa em todo o mundo posicionaram Victora no topo, com 47.202 citações.
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De Boston, onde atua como professor visitante na Universidade de Harvard, Victora conversou com a reportagem por e-mail.
Quando surgiu seu interesse por pesquisas em saúde pública?
Surgiu quando eu estudava medicina na UFRGS no início dos anos 1970. Naquela época, as condições de saúde da população gaúcha e brasileira eram precárias. A observação de pacientes que buscavam nossa faculdade despertou meu interesse por entender as causas de suas doenças. A Epidemiologia é a disciplina que nos permite entender como surgem as doenças e como podem ser prevenidas, a partir de estudos nas comunidades.
Em que momento decidiram iniciar as coortes de nascimento? Qual a importância de pesquisas com este nível de acompanhamento?
Uma coorte é um grupo de pessoas acompanhadas por pesquisadores ao longo do tempo. A primeira coorte de Pelotas surgiu em 1982 a partir de um estudo liderado por meu colega e parceiro profissional Fernando Barros. O objetivo era conhecer as condições de nascimento das crianças que nasciam em nossa cidade (Pelotas), pois naquela época as estatísticas governamentais eram muito falhas. Quando voltei de minha formação na Inglaterra, em 1983, passei a participar intensamente desse estudo, que continua até hoje. Nossas 6 mil crianças de 1982 estão agora com mais de 30 anos, e seguimos acompanhando a saúde e condições de vida de dois terços delas. Iniciamos uma segunda coorte em 1993, outra em 2004 e agora estamos colhendo dados das crianças nascidas em 2015. Cada coorte inclui todos os nascimentos ocorridos no ano, e Pelotas é reconhecida internacionalmente por estes estudos.
Você costuma dizer que quem quer pesquisar epidemiologia precisa ir a campo. Muitos desses estudos foram feitos batendo de casa e casa. De que maneira o contato direto com as pessoas aumenta o sucesso de pesquisas deste tipo?
A pesquisa epidemiológica requer estudar amostras representativas da população como um todo. Não podemos nos restringir a pessoas que espontaneamente buscam um serviço de saúde ou um hospital. Por este motivo enfatizamos as pesquisas de base populacional, que são capazes de descrever as condições de saúde da comunidade inteira.
Os resultados computados em Pelotas servem de modelo para todas as outras cidades do país? Quais as características que uma cidade deve ter, em termos de população, para tornar os resultados válidos para qualquer outra cidade?
Existem poucos estudos de coortes de nascimentos no Brasil. Em termos de estudos de grande porte, apenas as cidades de Ribeirão Preto e São Luís têm pesquisas similares. É muito difícil estudar coortes em cidades muito grandes, pois as pessoas mudam muito de endereço e deixam de ser localizadas. Cidades pequenas tampouco servem, pois o número de nascimentos é reduzido e as amostras são insuficientes. Pelotas é uma cidade ideal por seu porte, e porque há relativamente pouca migração para outros locais. Por exemplo, são muito poucas as coortes no mundo que conseguem acompanhar dois terços da amostra após três décadas.
Recentemente, um trabalho seu sobre a relação entre tempo de amamentação e os níveis de inteligência, escolaridade e renda na vida adulta chamou atenção da comunidade científica. Quais são os principais desafios da saúde pública hoje? De que forma essas pesquisas podem ajudar a reverter certos problemas da saúde infantil, como a subnutrição ou, por outro lado, a obesidade?
Nosso trabalho realmente alcançou uma enorme repercussão. Foi publicado há um mês e já é uma das 300 pesquisas, de um total de 3,7 milhões de artigos computados, que mais impactou a imprensa e as redes sociais. Em termos de desafios em nível mundial, a subnutrição segue afetando 30% das crianças. O Brasil teve um progresso impressionante em conseguir reduzir muito a subnutrição e a mortalidade infantil. Por outro lado, nossa prevalência de obesidade cresceu muito, trazendo uma série de problemas a longo prazo. Em termos de saúde das mães e crianças, creio que os principais problemas que nos afligem são a epidemia de prematuridade e de cesarianas (o Brasil é o líder mundial com quase 60%), a obesidade infantil e os abortos conduzidos sob condições precárias. A mortalidade infantil, embora em declínio, continua apresentando importantes desigualdades sociais e regionais, as quais podem e devem ser eliminadas.
Estudos do CPE apontam a importância dos primeiros mil dias de vida da criança. Quais são as indicações de cuidados a essas crianças durante este período?
Em nosso meio, os principais cuidados durante a gestação incluem evitar o fumo e as cesarianas com data marcada, assim como tratar adequada e precocemente as infecções em mulheres grávidas. Estas medidas contribuiriam muito para controlar a epidemia de partos prematuros que aflige nosso país. Após o nascimento, é importante amamentar o nenê exclusivamente, sem qualquer outro tipo de alimento (nem mesmo chás ou água) por seis meses, e continuar amamentando até os dois anos sempre que possível. A partir dos dois anos, temos que começar a nos preocupar com o ganho excessivo de peso da criança, que pode se tornar obesa e apresentar uma série de doenças crônicas quando chegar à idade adulta.
A que atribui o fato de estar no topo do ranking de citações no Google Acadêmico?
Creio que todos estes rankings tem suas limitações. Portanto, assim como posso estar em primeiro lugar nesta classificação específica, em outras classificações eu poderia não ocupar esta posição. Por outro lado, um número alto de citações por outros cientistas mostra que nossos trabalhos estão sendo lidos e influenciam o desenvolvimento da ciência. Para mim, o mais importante ainda é que minha pesquisa tenha aplicações práticas. Por exemplo, estou atualmente em Boston como professor visitante na Universidade de Harvard, e aqui na clínica pediátrica da Faculdade de Medicina o peso e altura das crianças são avaliados conforme uma curva de crescimento que criamos a partir de crianças pelotenses e de outras cinco cidades do mundo. Meu neto que aqui nasceu, quando consulta com sua pediatra, é comparado com esta curva, atualmente adotada em 150 países. Esta é uma das maiores satisfações que um pesquisador pode ter.
De que forma o senhor enxerga a ciência hoje e que futuro vê para as pesquisas epidemiológicas?
A ciência é essencial para o desenvolvimento e autonomia nacionais. No Brasil, os recursos destinados à pesquisa aumentaram bastante nas últimas duas décadas, mas está enfrentando cortes importantes em 2015. A situação do Rio Grande do Sul é particularmente precária, pois nossos governadores nunca repassaram para a Fundação de Amparo à Pesquisa os orçamentos previstos em lei. Temos no estado uma enorme potencialidade devido à alta qualificação de nossos cientistas, vários dos quais ocupam lugares de destaque na lista do Google Acadêmico. No entanto, ficamos com inveja de nossos colegas de São Paulo e outros estados, que recebem volumoso apoio de seus governos estaduais, ao contrário do que ocorre em nosso meio. Quanto à epidemiologia, é uma das áreas da ciência que mais crescem no mundo, pois pode fornecer respostas concretas sobre a prevenção de doenças e direcionar investimentos em saúde.