Que o Brasil carrega desigualdades profundas e complexas, não há quem conteste. Quando o assunto é como corrigir uma realidade em que um quinto de toda a renda gerada no país é apropriada por 0,5% da população, tudo se torna mais difícil.
Autoridade no tema, o sociólogo e pesquisador da Universidade Columbia Marcelo Medeiros se propôs a radiografar e discutir as crônicas assimetrias nacionais de forma acessível em Os Ricos e os Pobres – O Brasil e a Desigualdade. O livro mostra, por exemplo, que há muito mais desigualdade entre os 10% mais ricos da sociedade brasileira do que entre 80% da população adulta, o que limita a capacidade das políticas de assistência.
Nesta entrevista, ele sustenta que todas as ações do poder público, da política monetária aos subsídios, devem ter em vista quem está sendo beneficiado, e que o sempre alardeado desempenho do PIB pode ser enganoso, caso essa riqueza não esteja chegando a quem realmente precisa dela.
Uma frase emblemática do livro é “desigualdade tem a ver com riqueza, não com pobreza”. O senhor sustenta que combater a pobreza não é suficiente para combater a desigualdade, porque a desigualdade está concentrada entre os mais ricos. Por que é importante combater a desigualdade?
Eu respondo com outras perguntas. Por que devemos aceitar que as mulheres ganhem menos do que os homens quando têm as mesmas qualificações? Por que devemos aceitar as desigualdades raciais brasileiras? Isso é moralmente aceitável? Esses são dois tipos de desigualdades. E a razão fundamental para combater é porque isso é intrinsicamente errado. Mas não são só razões de natureza moral. Dinheiro é poder. Quem tem dinheiro tem muito poder e, portanto, tem muita capacidade de influenciar os destinos da sociedade e as ações dos governos. Nesse sentido, essa distribuição extremamente desigual de poder, no fundo, é uma ameaça à democracia.
O livro defende que todas as políticas públicas devem ser voltadas ao combate à desigualdade. O que isso significa, na prática?
Quando se discute combate à pobreza, é muito comum surgirem propostas de políticas de assistência social, o que está absolutamente correto. Mas isso não é o caso da desigualdade, que é um problema muito mais complexo e que não é causado por um conjunto pequeno de fatores. Na verdade, quando falamos de uma sociedade tão desigual quanto a brasileira, isso envolve uma articulação de um conjunto muito grande de determinantes e, portanto, não é fácil reduzir a desigualdade como seria reduzir a pobreza. Hoje não existe uma política de combate à desigualdade. E toda política, em alguma medida, afeta as pessoas de maneira desigual. Isso inclui, por exemplo, as nossas políticas de crescimento. O que cresce não é o Brasil, são algumas pessoas no Brasil que vão crescer. Porque um crescimento tem uma distribuição. Um crescimento de 3% é completamente diferente se for distribuído para os pobres ou para os ricos. A taxa é a mesma, mas o resultado social é completamente distinto. Isso ajuda a ilustrar por que toda política pública precisa ser uma política de combate à desigualdade. Precisamos perguntar para as políticas monetárias, para os subsídios que são dados para as empresas, para o sistema previdenciário, para tudo, em que medida estão enfrentando a desigualdade.
O senhor falou sobre crescimento e, geralmente, são indicadores como o desempenho do PIB que servem de régua para a avaliação do êxito de políticas econômicas. Por que se deter apenas nisso é equivocado?
Olhar apenas para o crescimento do PIB é um erro. O fundamental é olhar para a distribuição do PIB. Se a economia está crescendo, descobrir quem está crescendo mais e quem está crescendo menos. E estender isso para todas as políticas. A pergunta fundamental que deve ser feita para todas as políticas é: quem está ganhando mais e quem está ganhando menos com elas?
Logo no início do livro, o senhor afirma que não existe uma desigualdade, mas várias. Hoje há uma demanda muito forte de setores da sociedade sobre os governos por políticas igualitárias voltadas a questões de gênero e raça, por exemplo. Em que medida isso deve ou não estar articulado com políticas econômicas?
Existem várias desigualdades em dois sentidos. Primeiro, temos as dimensões de desigualdade: educacionais, de saúde e renda. Ninguém precisa justificar por que é importante olhar para a desigualdade de renda, mas não devemos deixar de prestar atenção nos outros tipos. Temos que perguntar, por exemplo, que tipo de desigualdade está sendo causada por nossa política educacional. Isso é uma coisa. Outra são os grupos a que a desigualdade se refere. Podemos ter um problema de desigualdade entre pessoas, entre regiões do país ou entre grupos sociais, como homens e mulheres, grupos raciais e assim sucessivamente. É um erro achar que essas coisas devem ser separadas. As desigualdades raciais, por exemplo, têm um impacto muito grande sobre os salários das pessoas. Na verdade, têm um impacto tão grande quanto teria uma política de Ensino Médio para o país inteiro. Dar Ensino Médio para toda a força de trabalho do país teria um efeito mais ou menos equivalente a você zerar a discriminação racial. Então, não é uma coisa de pequena escala, é uma escala gigantesca. Combater as desigualdades raciais é importante, inclusive, para reduzir desigualdade de classe. Existem debates que tentam trazer questões importantes para a esfera moral, e um exemplo clássico é o aborto. O aborto não deve fazer parte de uma discussão moral e, sim, de uma discussão de desigualdade de classe, porque está relacionado à saída ou não das mulheres do mercado de trabalho no momento em que elas querem ou não sair. E, portanto, determina uma parte grande da desigualdade de gênero do país. É preciso lembrar que mais ou menos dois terços de todas as gestações no Brasil não foram planejadas. Então, não é uma questão secundária. Assim como temos que lembrar que uma em cada sete mulheres já fez um aborto, o que também não é uma questão secundária. Além de ser uma questão de saúde pública, o aborto também é um problema de desigualdade de classe.
Há correntes no país que defendem que o combate à desigualdade deve se dar via crescimento econômico. Existem as máximas de que “o melhor programa de transferência de renda é o emprego” e que “não se deve dar os peixes e, sim, ensinar a pescar”. Por que isso é incorreto?
É incorreto porque desconsidera o horizonte temporal das políticas. Resolver completamente o problema da pobreza apenas via crescimento do PIB demoraria alguma coisa em torno de meio século. Mas o fundamental é que o crescimento pode simplesmente não alterar a desigualdade. Na verdade, há tipos de crescimento que aumentam a desigualdade. Então, essa é uma discussão tola, que foi abandonada já no início dos anos 2000 e que só é mantida residualmente no debate político. Hoje ninguém que leva a sério essa discussão acredita que não se deve ter políticas de assistência em grande escala. Todos os países do mundo que conseguiram reduzir pobreza fizeram isso por meio da assistência. A história de “não dar o peixe e ensinar a pescar” ignora que ensinar a pescar uma população inteira, que tem níveis educacionais baixíssimos, vai, primeiro, custar extremamente caro. E, segundo, vai levar tempo contado em várias décadas.
O fundamental é olhar para a distribuição do PIB. Se a economia está crescendo, descobrir quem está crescendo mais e quem está crescendo menos. E estender isso para todas as políticas públicas.
O governo federal retomou, no ano passado, a política de valorização do salário mínimo, inclusive instituindo em lei. Naquele momento, houve algumas críticas, sobretudo quanto ao impacto disso sobre as contas públicas e sobre as empresas. Como o senhor avalia essa medida no atual cenário?
O salário mínimo foi o principal fator de redução da pobreza nas duas últimas décadas. Não foi a assistência social, foi fundamentalmente o desempenho do mercado de trabalho e as elevações do salário mínimo. É mais ou menos consenso entre quem estuda o assunto que pequenos aumentos no salário mínimo não têm impacto muito negativo na economia. Aumentos muito grandes podem causar um choque. Aumentos pequenos são facilmente absorvíveis. Haverá um ponto em que esses aumentos poderão realmente ter efeito suficientemente negativo para ser objeto de preocupação, mas não tem sinal algum de que estamos perto disso. E os pequenos aumentos são facilmente reversíveis, porque basta não dar aumento no ano seguinte que a inflação se encarrega de reverter a política.
Um dos caminhos apontados no livro para combater a desigualdade é via tributária. No ano passado, foi aprovada, a duras penas, uma reforma que incide sobre o consumo e prevê medidas como, por exemplo, devolução de parte dos impostos recolhidos aos mais pobres. O senhor acha que essa reforma, que ainda precisa ser regulamentada, terá alguma contribuição à redução das desigualdades ou isso vai depender da próxima etapa, que vai incidir sobre a renda?
Nenhuma reforma tributária isolada será suficiente para causar impactos substantivos sobre a desigualdade. Assim como a educação não é uma panaceia, a tributação também não é. Dito isso, toda arrecadação pública retorna de alguma maneira para a população. Às vezes retorna para os mais ricos, às vezes, para os mais pobres. Então é óbvio que temos que olhar para o lado da arrecadação e tornar o sistema o mais progressivo possível. Está correta a última reforma e está correto também reformar o Imposto de Renda. Mas não devemos deixar de lembrar que o governo pode reduzir a desigualdade de outras formas, gastando mais dinheiro em saneamento, saúde, educação. Tudo vai, em alguma medida, voltar para a população mais pobre. O que interessa é isso: que a arrecadação volte para a população mais pobre.
O debate sobre reformas tributárias expõe muito a resistência a certas políticas, como a adoção de uma tributação progressiva. Quando surge uma proposta nesse sentido, o avanço é sempre penoso, sobretudo no Congresso. A explicação estaria em uma frase que consta no livro: “riqueza é poder”?
Sim, mas, mais do que isso, é a expressão do conflito distributivo. Combater a desigualdade não é fácil porque mexe nas posições e interesses constituídos. Portanto, dá trabalho, envolve mobilização política. Não é uma questão trivial, não é uma questão de concessão de um grupo ou de outro, é uma questão, no fundo, de luta política.
Alguns setores políticos defendem fortemente a taxação de grandes fortunas, que já existe em outros países. Qual o potencial e conveniência disso, na sua avaliação?
Não acho que devemos taxar as grandes fortunas; acho que devemos taxar todas as fortunas. Na verdade, o Brasil já tributa todas as fortunas. Temos, por exemplo, o IPTU, um imposto sobre o patrimônio. Seu desenho é ruim, mas os imóveis são metade de toda a riqueza do país declarada à Receita Federal. Então, o Brasil já tributa metade do seu patrimônio. A pergunta é se vai querer tributar a outra metade e, se o fizer, como vai fazer. É possível ter desenhos de tributos para essa outra metade que não só melhorariam a tributação dos imóveis como potencialmente podem ser integrados ao Imposto de Renda. Isso criaria um imposto mínimo sem aumentar brutalmente a carga tributária sobre quem já paga Imposto de Renda.
Isso significa tributar o patrimônio e compensar no Imposto de Renda?
Sim. Patrimônio é apenas renda acumulada. Na essência, não há diferença entre o objeto do Imposto de Renda e o objeto de um imposto sobre o patrimônio. Então, se o imposto está sendo pago sobre o patrimônio, deve ser descontado do Imposto de Renda. Isso cria um imposto mínimo. Mas quero frisar: isso também não vai ser uma panaceia e não vai criar uma arrecadação gigantesca.
Um argumento recorrente de quem se opõe a uma ampliação da tributação sobre patrimônio é o risco de fuga de capitais.
É ingênuo achar que qualquer tributação sobre patrimônio vai causar uma fuga massiva de capitais. Não há fundamentos para dizer isso, depende de uma série de coisas. Se a tributação for muito baixa, não vai ter fuga nenhuma. E nem todo capital pode sair do país. Na verdade, três quartos do capital não têm como sair. Embora a gente deva esperar alguma fuga, eu duvido que seja algo massivo. Por exemplo, o peso na Bolsa de Valores de duas empresas, Petrobras e Vale, é gigantesco. As pessoas vão retirar todos os capitais que estão investidos lá só porque a tributação está acontecendo? Esse medo, na verdade, é para evitar tributação de rico. E esse argumento serve também para subsídios. Se você tirar os subsídios de empresas, vai ter fuga, afinal os capitais estão aqui porque as empresas estão sendo subsidiadas. Aí eu pergunto: por medo de fuga de capitais, nós não vamos cortar os subsídios errados?
É ingênuo achar que qualquer tributação sobre patrimônio vai causar uma fuga massiva de capitais. Nem todo capital pode sair do país. Na verdade, três quartos do capital não têm como sair.
Voltando ao modelo que o senhor propõe, de compensar no Imposto de Renda a tributação sobre o patrimônio. Isso cria um sistema mais justo, mas se há uma compensação, não gera impacto sobre a arrecadação, certo?
Uma compensação diminui a arrecadação, necessariamente. Mas o objetivo do sistema tributário não é só arrecadar, é ser justo. Então é claro que temos que desenhar de maneira a ser justo. Você pode arrecadar elevando alíquotas para todo mundo, não simplesmente fazendo isso no topo.
Há uma ideia estabelecida em boa parte da sociedade de que a chave para o combate à desigualdade está na educação. sem deixar de ressaltar a necessidade de investimentos educacionais, seu livro desconstrói essa ideia. Por quê?
Não desconstruo a ideia de que educação é importante, mas de que Ensino Médio é suficiente. O que faz diferença para a desigualdade de renda é o Ensino Superior. Se o Brasil quiser levar adiante a ideia de usar a educação para combater a desigualdade, será preciso massificar o Ensino Superior. Isso vai custar caro e levar muito tempo.
Uma das questões discutidas no livro é a focalização dos programas sociais, que muitas vezes deixam de atender pessoas com uma condição parecida à das que são atendidas, além da questão da mobilidade – pessoas que entram e saem da condição de pobreza. Há como expandir políticas sociais diante das limitações fiscais? É apenas uma questão de prioridade?
Primeiro, não podemos ignorar que o orçamento é uma escolha política. Existem freios para vários lados, com determinações legais, mas, como qualquer escolha política, sempre tem uma margem de manobra. Essa margem, em qualquer orçamento do mundo, é limitada, mas não quer dizer que não possam ser feitas manobras. Por exemplo, o Brasil tem gastos tributários grandes, com subsídios a setores da economia que não precisavam. Esse dinheiro pode ser usado para outras coisas. O orçamento também pode ser alterado no médio prazo: pode-se arrecadar mais, aumentando a tributação, para fazer mais gastos sociais. Tudo isso é possível. Temos de lembrar que, na composição do orçamento brasileiro, dois grandes grupos de despesas se destacam. Um envolve os gastos previdenciários, que no fundo refletem uma combinação de poupança e assistência. O outro envolve as despesas que precisam ser feitas para manter a política monetária, para manter a inflação baixa, para pagar juros. É claro que não se pode ingenuamente mudar uma política monetária da noite para o dia, mas temos de pensar melhor se não há estratégias mais adequadas no longo prazo. Por exemplo, se o Brasil tem dívida, talvez seja hora de fazer o que o governo, corretamente, está tentando fazer, que é aumentar a arrecadação para evitar ter de contrair mais dívida para manter o sistema funcionando. E é óbvio que tem de cortar alguns gastos, mas isso não é fácil. Não é trivial cortar gastos do sistema previdenciário, porque implicaria em violação de contratos. Se o Brasil está disposto a violar contratos e se isso é bom ou não, é outra discussão.