Por Maria Carpi
Autora de “A Esperança contra a Esperança” (AGE), entre outros
Todos os núcleos habitacionais têm periferias. Não é um problema urbano, de arquitetura. É o excedente além do nosso bem-estar e proteção. Mas vai além, sendo o espólio do lucro e da ganância: o cinturão da pobreza. Para uns, bem nutridos, os celeiros cheios; aos demais, o refugo do trigo.
É normal e saudável aspirar por certo conforto em nossa existência. E o que temos obtido pelo trabalho passamos a nossos filhos como herança. As leis nos protegem.
Mas há também leis “ilegítimas” a contrabando da decência a nos proteger do acúmulo desmedido, retirado da sobrevivência dos habitantes das periferias. Pois a aglomeração periférica não cabe num livro ou texto de jornal. São vários rios num caudal de insalubridade. Não cabe nas doações debitadas no Imposto de Renda.
Em minha experiência de defensora pública no atendimento a jovens e crianças em situação de risco, constatei que há dois males que se contrapõem: a miséria e o luxo. Não a pobreza, que é ter o estritamente necessário. Grandes homens vieram de lares pobres ou exerceram a pobreza em vida. Miséria é o estado de degradação da dignidade da existência. E, o mais surpreendente, gerada pelo próprio homem. Mas afirmo – e constatei – que o pior dos males é o luxo, quando os jovens recebem em demasia, sem ter responsabilidade com os demais.
Ambos, a miséria e o luxo, podem levar à delinquência. E, quando os sobreviventes da miséria saem das periferias, deveríamos assumir a culpa de tê-los deixado ao descaso do nosso egoísmo sistêmico. Somos peritos em transferir a nossa responsabilidade a outrem pela insalubridade da vida.
Os que habitam o deslugar da periferia foram expulsos do dilúvio desde o ventre materno com a barca do sofrimento, sem choro, com cachorros ou galinhas ao fogo da estimação. Convivem com a falta. De esgoto, latrinas, água potável e pão na mesa. Salário e plano de saúde não estão no dicionário da falta. E convivem, temprano, com a fome. Quando nós dizemos que temos fome, exageramos. Temos apetite. A fome, essa pontada no estomago vazio, nunca tivemos. Ainda mais com três refeições ao dia. Mais os festejos e aniversários. E ainda o luxo da sobra que vai ao lixo.
Agora um vírus democrático alcançou também as periferias e os oásis habitacionais. O que acumulamos está indo para o ralo. E o que nos resta? Nos unirmos. Não uma união preferencial, essa que fazemos com parentes e amigos. Com os que dispõem de geladeiras e atendimento médico. Nos unirmos como comunidade em nossas cidades, nossa pátria e, principalmente, como nação responsável e fraterna entre nações, dignos de habitarmos o planeta Terra.
Não há mais lado oriental e lado ocidental. Partidos de esquerda e de direita. Ideologias e fanatismos religiosos. Países ricos e países pobres. Do primeiro mundo e do segundo mundo. Enquanto não debelarmos o vírus aos menos favorecidos, estamos engordando a cepa que também nos atingirá.
“De que lado está Deus”, pergunta Camus, aos que vão para a guerra, em diversas fronteiras? Ou, como dizem todos os credos, de nada adianta a fé sem as obras. Em todos os países, as periferias de Pasolini nos rodeiam com o céu de gaviões e passarinhos.
Tudo converge para que cada um faça a sua parte na responsabilidade pelos demais em nosso convívio diário. A Carta Magna e o Estatuto da Infância há muito declaram que somos iguais perante a lei, com direitos e deveres. E o cuidado com a infância é dever prioritário de cada cidadão. Somos comunidade, e não uma legião de privilegiados. A liberdade é uma escolha da responsabilidade com os demais, e não apenas, lamentavelmente, uma estátua norte-americana além das periferias, engessada em uma ambição sem medida.
Em vida, os desabrigados podem repetir o verso de Quintana: “Eu moro em meu corpo”. Contudo, seremos periferia de nós mesmos, alienados ao perigo? Que o próprio perigo nos irmane a sermos comunidade. Só sairemos dessa pobreza quando sairmos da pobreza da ganância.
O espaço público requer coexistência. Fora do nosso tacanho existir, empurramos para o esgoto a céu aberto o que não sabemos ou não queremos melhorar. O nosso bem presente gera o nosso futuro mal. Agora apenas um ruído de moscas. O mais grave, porém, não é a perda da moradia, mas a perda da identidade.
A vala comum do orbe não tem epitáfios ou verbetes póstumos. Como disse o poeta João Cabral, uma cova rasa não cabe nesse latifúndio. Sempre fora de nossos projetos ou conjeturas, mas num entorno inacessível, agora a periferia tem o direito de ocupar o lugar vago do texto e do convívio.
Um passo a mais todos os dias, na esperança de finalmente sermos fraternidade. E honrarmos termos nascidos num mundo verdadeiramente humano. E, em conjunto, teremos a solução para as intempéries e os cataclimas da natureza, com o canto geral de Neruda, Gabriela Mistral e todos os poetas da cordialidade dando início uma nova era da cidadania entre os homens e mulheres da terra.
Cabe lembrar quão oportuna é a Campanha da Fraternidade da CNBB deste ano, com o lema “Dai-lhes vós mesmos de comer”, pois o milagre da repartição dos pães começa pela nossa comunidade em saciar aos que têm fome na mesa do convívio.
Na literatura sacra, um certo galileu, durante o censo, teve de nascer numa estrebaria, na periferia de Belém. Agora, com a fome e o aumento dos cortiços insalubres, a própria nação está sem moradia.