Um projeto bilionário vem superando etapas burocráticas para sair da prancheta sob a promessa de melhorar a logística do Rio Grande do Sul, garantir um novo ponto para escoamento da produção e impulsionar a economia do Litoral Norte. A proposta de se construir um novo porto litorâneo em Arroio do Sal por meio de um investimento de R$ 6 bilhões ganhou autorização da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) para seguir adiante e já está na etapa inicial do processo de licenciamento ambiental junto ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
O avanço dos planos anima o município litorâneo, que já registra aumento no valor médio dos terrenos, e empreendedores da região de Caxias do Sul que buscam um caminho mais curto até o mar para exportar seus produtos. Mas também desperta críticas de autoridades e de empresários vinculados ao porto de Rio Grande, que questionam as vantagens e a viabilidade da iniciativa, e de ambientalistas preocupados com impactos sobre a natureza em uma zona sensível.
O chamado Porto Meridional já obteve aval da Secretaria Nacional de Portos e da Marinha, foi homologado pela Antaq e recebeu o termo de referência do Ibama – documento que baliza os estudos ambientais.
— Esse termo já está guiando as análises do Eia-Rima (estudo e relatório de impacto ambiental). No final do ano passado, começamos os trabalhos de campo. Temos até o final do próximo outono para concluir esses levantamentos de campo, compilar o material e ter as informações de diagnóstico, impactos, medidas mitigadoras. Se tudo der certo, esperamos obter a primeira licença ainda em 2024 — afirma o diretor de Desenvolvimento de Negócios da DTA Engenharia (empresa que desenhou o projeto do novo porto), Daniel Kohl.
Kohl refere-se à coleta de informações em diferentes estações do ano para sustentar os estudos ambientais e dimensionar eventuais ameaças e medidas que reduzam esses riscos. Se o documento for aprovado, a iniciativa poderia receber uma licença prévia do Ibama, que admite a possibilidade de um empreendimento se instalar no local previsto. Depois disso, ainda seria necessário obter as licenças de instalação (para início das obras) e de operação (que permite entrar em funcionamento). Não há prazo pré-determinado para que isso ocorra.
Kohl explica ainda que, apesar da homologação inicial da Antaq, os empreendedores também aguardam "para os próximos meses" a assinatura da autorização definitiva por parte da agência. O primeiro aval foi um parecer favorável à construção e à operação do terminal de uso privado, e que permitiu à proposta seguir tramitando para, agora, validar a sua localização.
— Para assinar o contrato definitivo é preciso anexar mais alguns documentos, o que já está sendo feito a exemplo do termo de referência do Ibama — complementa Kohl.
Plano prevê diferentes possibilidades de recursos
Com espaço para 10 navios atracarem, sendo dois de cruzeiro para atender ao turismo, o novo porto gaúcho exigiria cerca de R$ 1,3 bilhão para infraestrutura básica, como dragagem, quebra-mar, aterro, instalações comuns e acesso viário, e outros R$ 4,7 bilhões para estruturas complementares – terminais específicos, instalações de armazenagem e outros itens.
— Já foram investidos cerca de R$ 50 milhões, principalmente na aquisição de áreas (onde devem ficar as instalações de apoio, o chamado retroporto) e no desenvolvimento do projeto — afirma o diretor jurídico da empresa Porto Meridional, André Busnello.
Para fechar as contas, tirar o porto do papel e colocá-lo na água, os empreendedores dizem contar com diferentes opções de recursos. A fórmula definitiva ainda está em elaboração, mas poderia envolver aportes próprios, de parceiros privados e financiamento de instituições de fomento como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). No lançamento formal da proposta, no final de 2021, o presidente da DTA, João Acácio Gomes de Oliveira Neto, assegurou que já havia cartas de compromisso assinadas com seis grupos interessados em usar o porto, o que garantiria um movimento anual de 10 milhões de toneladas.
— Num porto com capacidade para 50 (milhões de toneladas), 20% disso já é carga suficiente para colocá-lo de pé — assegurou Oliveira.
Em 2023, os três portos existentes no Estado (Rio Grande, Porto Alegre e Pelotas) movimentaram juntos 44,8 milhões de toneladas — 95% disso via Rio Grande.
A expectativa dos empreendedores é de gerar cerca de 2 mil empregos durante a construção e perto de mil vagas ao longo da operação. Se as previsões se confirmarem, e as obras tiverem início no começo do ano que vem, o novo porto litorâneo poderia entrar em operação em 2026.
Prós e contras
Vantagens
Localização: menor distância da Serra, grande região exportadora gaúcha, poderia agilizar e baratear a logística para deslocamento da produção. Proximidade com Santa Catarina também poderia atrair produção que hoje sai pelo Estado vizinho.
Manutenção: os empreendedores dizem que haveria pouca deposição de material no canal, enquanto o porto de Rio Grande exige dragagens frequentes para manter o calado (distância entre a superfície e a parte inferior da embarcação). O calado de Rio Grande chegou a ser homologado em 15 metros em 2020, mas hoje está em 13m60cm, sob manutenção. Navios maiores exigem mais calado para não encalharem.
Impacto econômico: a instalação de um porto tende a atrair novos empreendimentos e moradores, alavancando a arrecadação do município e até de cidades próximas. Esse resultado foi visto em Itapoá (SC), que liderou o crescimento populacional daquele Estado entre os dois últimos censos.
Desvantagens
Acesso viário: seria preciso construir um acesso de cerca de 10 quilômetros até a BR-101, passando pela Estrada do Mar e com uma ponte sobre a Lagoa Itapeva. Os empreendedores sustentam que o traçado ainda está sob discussão com autoridades, mas o senador Luis Carlos Heinze (PP), defensor do projeto, afirma que a ideia é cruzar a Estrada do Mar por uma elevada.
Ambiente: a zona litorânea em que se localizaria o porto é considerada sensível, com espécies sob risco e em meio a outras áreas já alteradas pela presença humana e pelo rápido crescimento urbano. Essas questões terão de ser contempladas no estudo ambiental em desenvolvimento junto ao Ibama.
Impacto sobre outros portos: apesar da intenção de atrair carga que hoje é escoada por outros Estados, a implantação de um novo porto tende a capturar parte da carga que hoje se destina ao complexo estadual formado não apenas pelo porto de Rio Grande, mas também pelas unidades de Pelotas e Porto Alegre.
Projeto opõe metades norte e sul do Estado
Defendido por empresários da Serra e visto como um trampolim para o desenvolvimento pela prefeitura de Arroio do Sal, o plano de se construir um porto no Litoral Norte também enfrenta contestações no Rio Grande do Sul. Os questionamentos mais veementes vêm da Metade Sul — principalmente de Rio Grande, onde fica hoje o principal porto gaúcho. Um dos temores é de que, em vez de atrair carga de outros Estados, o Meridional comprometa a sustentação dos três embarcadouros existentes hoje no Estado por meio de uma competição interna. Empresários de Caxias do Sul, de outra parte, estão entre os principais entusiastas da ideia por entenderem que uma nova estrutura na Metade Norte aumentaria a competitividade do Estado em relação a locais como Santa Catarina, que conta com cinco portos litorâneos de maior porte.
— A engenharia permite qualquer coisa, mas vejo dificuldades enormes envolvendo esse projeto do Porto Meridional. Não tem acesso (viário) e envolve uma questão ambiental extremamente complexa. Seria muito melhor olhar para o porto de Rio Grande e atender as necessidades que ele tem — avalia o presidente da Câmara de Comércio do município e do Tecon Rio Grande, Paulo Bertinetti.
Presidente da Portos RS, empresa pública que administra unidades em Rio grande, Pelotas e Porto Alegre, Cristiano Klinger sustenta que, em menos de dois anos, foram aplicados ou contratados investimentos de R$ 350 milhões para o sistema portuário existente hoje no Estado — que considera bem estruturado para dar conta da demanda atual.
— Nosso complexo inclui três portos públicos, nove terminais arrendados e 22 privados. Quando falamos em escoar nossa produção, Rio Grande dá conta e ainda há espaço para incremento. Temos investimentos públicos e privados para dar conta desse crescimento — aponta Klinger.
Um estudo feito a pedido da Portos RS e encaminhado à Antaq aponta, com base em dados da própria Meridional, que Arroio do Sal poderia captar 30% da carga direcionada atualmente a Rio Grande, 25% do volume de Pelotas e 75% da fatia destinada à Capital.
Em relação aos aspectos ambientais, o professor do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e membro da coordenação do Instituto Ingá, Paulo Brack, afirma que há riscos.
— Há uma tremenda preocupação ambiental, tanto pela preservação de animais marinhos como baleias e golfinhos que circulam pela região, quanto pela ameaça a uma zona costeira que é muito sensível e tem espécies ameaçadas. Achamos que aquela área, de mar aberto, não tem vocação para porto. É preciso trazer muita rocha para fazer um píer — argumenta Brack.
Custos de logística do RS são elevados
Diretor da DTA Engenharia, Daniel Kohl defende a viabilidade da nova estrutura.
— Ainda estamos no começo dos estudos ambientais. O termo de referência do Ibama é bastante rígido. Trata-se de uma área já bastante antropizada (com presença humana), com condições de acesso para ter uma via direta ao novo porto. Impactos ambientais e o cuidado com a comunidade local serão tratados nos estudos ambientais — afirma Kohl.
Integrante da comissão de Infraestrutura do grupo Mobilização por Caxias do Sul (MobiCaxias), Ruben Bisi considera o novo porto fundamental para aumentar a competitividade da região — que está distante cerca de 320 quilômetros de Rio Grande e a 180 quilômetros do futuro embarcadouro.
— Enquanto ficamos brigando, Metade Sul contra Metade Norte, Santa Catarina construiu mais portos. Precisamos ter mais portos, mais ferrovias, mais aeroportos. Reduzir os custos logísticos — defende Bisi.
A MobiCaxias estima que empresas da região gastam entre 4% e 5% de suas receitas com transporte, enquanto uma melhor infraestrutura poderia reduzir essa cifra quase à metade. Presidente da Câmara Brasileira de Logística e Infraestrutura (CâmaraLog), Paulo Menzel avalia que o custo acumulado de todos os setores da economia gaúcha com logística alcança 21,5% do PIB, contra um índice de 19% em São Paulo, por exemplo. Uma das formas de reduzir esse patamar seria melhorar a infraestrutura estadual por meio de mais investimentos, na sua avaliação.
— O Porto Meridional é privado, ou seja, todo o risco é privado. Se vai tirar carga de outro porto, só o tempo dirá. Quando entrar em operação, como em qualquer lugar do mundo, os importadores e exportadores é que vão avaliar a melhor opção. É assim que funciona em qualquer lugar do mundo. É preciso deixar que o mercado se regule — argumenta Menzel.